1. "Jango era habilidoso como líder"
A VERDADE: O presidente vacilava entre buscar apoio no Congresso e atender à pressão da esquerda
A esquerda brasileira recebia em janeiro de 1963 a última notícia boa das próximas quatro décadas. Com o apoio de sindicatos e de movimentos sociais, o presidente João Goulart (PTB) recuperou os poderes que o Congresso lhe tinha arrancado 16 meses antes. O chefe de Estado voltava a ser chefe de governo. Agora, faltava pôr em prática o programa de reformas de base.
Parecia o fim da confusão começada ainda na eleição de 1960, época em que presidente e vice eram eleitos separadamente. A presidência foi para o conservador Jânio Quadros (PTN), do jingle “varre, varre, vassourinha”. Sua promessa era acabar com a corrupção dos governos herdeiros do populismo de Getúlio. Só que o vice eleito vinha exatamente da linhagem getulista. Jango tinha sido ministro do Trabalho de Getúlio (1953-1954) e vice-presidente de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Quem venceu não foi a direita ou a esquerda, mas o “populismo” em suas duas vertentes opostas.
Jânio não limpou o Brasil; em vez disso, foi conhecido por atos erráticos. Proibiu o biquíni e as brigas de galo, condecorou Che Guevara e se consagrou por usar a mesóclise: “bebo porque é líquido; se fosse sólido, comê-lo-ia”.
A VERDADE: O presidente vacilava entre buscar apoio no Congresso e atender à pressão da esquerda
A esquerda brasileira recebia em janeiro de 1963 a última notícia boa das próximas quatro décadas. Com o apoio de sindicatos e de movimentos sociais, o presidente João Goulart (PTB) recuperou os poderes que o Congresso lhe tinha arrancado 16 meses antes. O chefe de Estado voltava a ser chefe de governo. Agora, faltava pôr em prática o programa de reformas de base.
Parecia o fim da confusão começada ainda na eleição de 1960, época em que presidente e vice eram eleitos separadamente. A presidência foi para o conservador Jânio Quadros (PTN), do jingle “varre, varre, vassourinha”. Sua promessa era acabar com a corrupção dos governos herdeiros do populismo de Getúlio. Só que o vice eleito vinha exatamente da linhagem getulista. Jango tinha sido ministro do Trabalho de Getúlio (1953-1954) e vice-presidente de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Quem venceu não foi a direita ou a esquerda, mas o “populismo” em suas duas vertentes opostas.
Jânio não limpou o Brasil; em vez disso, foi conhecido por atos erráticos. Proibiu o biquíni e as brigas de galo, condecorou Che Guevara e se consagrou por usar a mesóclise: “bebo porque é líquido; se fosse sólido, comê-lo-ia”.
Comício da Central, dia 13 de março. Essa foi a primeira e última tentativa de Jango governar pelas ruas. Conservadores se assustaram e deram um golpe 18 dias depois. (Acervo Reminiscências/ Montagem sobre reprodução)
Bastaram sete meses para Jânio renunciar, alegando “forças terríveis”. Nunca especificou quais eram tais forças, mas a maioria dos historiadores aposta mesmo numa tentativa de golpe branco. Jânio provavelmente esperava que o Congresso rejeitasse sua renúncia, por temer que Jango estabelecesse uma “república sindicalista”. Para deixar a cena ainda mais indigesta, Jango estava em visita oficial à China comunista.
Se o Congresso rejeitasse a renúncia, Jânio poderia alavancar seu poder. Só que a direita tinha uma terceira via em mente. O Congresso aceitou a renúncia de Jânio, e os ministros militares barraram a posse de Jango. Foi o golpe antes do Golpe.
A esquerda não deixou por menos. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola (PTB) armou a população para defender a posse de seu cunhado Jango. A Campanha da Legalidade conseguiu o apoio do 3º Exército, comando da região Sul. Para evitar uma guerra civil, o Congresso tirou da cartola uma solução de compromisso. Jango assumiria a presidência, mas teria poderes limitados pelo sistema parlamentarista. Seria um remendo temporário – em 1965, um plebiscito deveria decidir se o presidencialismo voltaria.
A experiência foi desastrosa. Em 16 meses, foram primeiros-ministros Tancredo Neves (PSD), Brochado da Rocha (PSD) e Hermes Lima (PTB). O País estava ingovernável. Sindicatos favoráveis a Jango ameaçavam greve geral caso não se antecipasse o plebiscito. Até mesmo raposas políticas como JK e seu arquirrival Carlos Lacerda (UDN) defenderam a volta ao presidencialismo, já de olho em suas candidaturas em 1965. O plebiscito foi antecipado e, por 91% dos votos, o presidencialismo voltou.
Bastaram sete meses para Jânio renunciar, alegando “forças terríveis”. Nunca especificou quais eram tais forças, mas a maioria dos historiadores aposta mesmo numa tentativa de golpe branco. Jânio provavelmente esperava que o Congresso rejeitasse sua renúncia, por temer que Jango estabelecesse uma “república sindicalista”. Para deixar a cena ainda mais indigesta, Jango estava em visita oficial à China comunista.
Se o Congresso rejeitasse a renúncia, Jânio poderia alavancar seu poder. Só que a direita tinha uma terceira via em mente. O Congresso aceitou a renúncia de Jânio, e os ministros militares barraram a posse de Jango. Foi o golpe antes do Golpe.
A esquerda não deixou por menos. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola (PTB) armou a população para defender a posse de seu cunhado Jango. A Campanha da Legalidade conseguiu o apoio do 3º Exército, comando da região Sul. Para evitar uma guerra civil, o Congresso tirou da cartola uma solução de compromisso. Jango assumiria a presidência, mas teria poderes limitados pelo sistema parlamentarista. Seria um remendo temporário – em 1965, um plebiscito deveria decidir se o presidencialismo voltaria.
A experiência foi desastrosa. Em 16 meses, foram primeiros-ministros Tancredo Neves (PSD), Brochado da Rocha (PSD) e Hermes Lima (PTB). O País estava ingovernável. Sindicatos favoráveis a Jango ameaçavam greve geral caso não se antecipasse o plebiscito. Até mesmo raposas políticas como JK e seu arquirrival Carlos Lacerda (UDN) defenderam a volta ao presidencialismo, já de olho em suas candidaturas em 1965. O plebiscito foi antecipado e, por 91% dos votos, o presidencialismo voltou.
Ilusão de poder
Jango estava confiante não apenas por ter recuperado o Executivo. As eleições legislativas de 1962 pareciam ter jogado o Congresso no seu colo. A bancada do seu PTB tinha quase dobrado, de 66 para 116 deputados. Somando os 118 deputados do centrista PSD, tradicional aliado do PTB, Jango tinha garantida a maioria dos 410 assentos na Câmara. Já a rival UDN tinha meros 91 assentos, e os 85 restantes estavam com vários partidos pequenos.
Jango conseguiu chegar a esse ponto apoiando-se nos ombros da esquerda, desde a Campanha da Legalidade até a campanha pelo plebiscito. Agora, poderia retribuir com as reformas de base que a esquerda defendia. Pura ilusão.
O governo tinha apoio de grandes grupos, mas em direções opostas. Nas ruas, sindicatos e movimentos sociais pressionavam por reformas de base. Já no Congresso, o aliado PSD sustentava seu horror a mudanças. Não era um partido reformista, mas uma agremiação de elites políticas regionais ocupada em permanecer no poder (qualquer semelhança com partidos de hoje não é coincidência). E, no meio disso, estava Jango. Com o centrão do PSD, ele não atenderia às esquerdas. E, sem esse centrão, não governaria.
Quem queria mudanças tinha menos compromisso com a democracia. E quem tinha compromisso com a democracia tinha menos compromisso com mudanças.
Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
“Aqueles que queriam mudanças tinham na época menos compromisso com a democracia. E os que tinham compromisso com a democracia tinham menos compromisso com as mudanças”, disse Fernando Henrique Cardoso ao historiador Ronaldo Costa Couto em Memória Viva do Regime Militar. “Sentíamos naquele momento os efeitos da industrialização, da urbanização. O Brasil tinha mudado. E as instituições políticas não foram capazes de assimilar, de forma coordenada, a presença das massas, as mudanças necessárias e o compromisso com a democracia.”
Sem conseguir escolher entre o centrão e o povão, Jango decidiu manter um pé em cada jangada. Para agradar à esquerda, partiu para uma retórica reformista. Ao mesmo tempo, tentou se conciliar com o PSD no Congresso – afinal, eram antigos aliados. Tudo o que conseguiu foi polarizar a política.
À esquerda, estava o antigo aliado PTB, movimentos sociais, sindicatos e comunistas do PCB. À direita, a UDN e um setor militar que já tentara derrubar Getúlio (1954), JK (1955) e Jango (1961). Agora, o PSD precisava decidir para que lado o centro iria.
A canoa virou
Crises políticas costumam navegar em tormentas econômicas. O governo Jango não foi diferente. Depois de construir grandes rodovias e uma capital novinha, JK deixou a conta para seus sucessores. Em 1963, o PIB per capita brasileiro diminuía pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial; a inflação subia de 52%, em 1962, para 75%; as greves aumentavam de 154, em 1962, para 302, e o déficit fiscal atingia mais de um terço do orçamento.
O ministro do Planejamento, Celso Furtado, tentou arrumar o caos com o Plano Trienal. A proposta miraculosa: baixar a inflação e retomar o crescimento, ao mesmo tempo. De um lado, cortaria gastos públicos; de outro, faria as reformas de base para redistribuir renda.
O ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, foi à TV pedir o apoio de políticos, empresários e trabalhadores. Não teve o de ninguém. A esquerda queria reformas sem austeridade. E as classes mais conservadoras queriam austeridade sem reformas.
TRAIÇÃO PARTIDÁRIA
Em 1962, o governo parecia ter a Câmara nas mãos – até o PSD abandonar Jango.
Desde 1945, a política brasileira se dividia em dois grupos. De um lado, os partidos criados por Getúlio: PTB, trabalhista, e PSD, de centro. Juntos, sempre formavam a maioria no Congresso. De outro lado, esperneava a UDN, liberal conservadora. Esse equilíbrio começou a mudar com a urbanização do Brasil. O PTB ganhou assentos e, com Jango, deu uma guinada para a esquerda. O PSD se incomodou e pulou para o lado da UDN. Assim, Jango perdeu a maioria no Congresso e, com isso, não conseguiu governar. Clique para ampliar (Dossiê SUPER (365)/Superinteressante)
A primeira derrota veio ainda no primeiro semestre de 1963. Goulart propôs que a desapropriação de terras improdutivas fosse paga com títulos da dívida pública, em vez de dinheiro “vivo”. O PSD, que já não era mais o aliado de antigamente, não apoiou a proposta, e a ideia foi rejeitada. Jango também propôs esse tipo de indenização para desapropriação de imóveis urbanos. Perdeu de novo.
Ficava claro que o PTB e o PSD não se identificavam mais. Com a polarização política, o centrão deslizou para a direita. O governo perdeu o PSD para a UDN e se isolou no Congresso. A ilusão de poder se desfez. E as tais reformas, que incluíam desapropriação de latifúndios e mais Estado na economia, terminaram engavetadas no Congresso.
Na lei ou na marra
É normal que regimes democráticos encarem uma polarização política. Mas, em condições normais, o polo perdedor não tenta a vitória no tapetão. Reconhece a queda, vai para a oposição e tenta ganhar a eleição seguinte. Por mais que as regras do jogo sejam inconvenientes no curto prazo, o custo de obedecê-las é menor do que o trauma de um golpe.
Mas, no fim de 1963, o Brasil não vivia mais uma simples polarização política. O cenário era de radicalização aberta. Nem a esquerda e nem a direita queriam mais seguir as regras do jogo. O governo não conseguia aprovar mais nada no Congresso. Então os atores políticos decidiram desemperrar a política à força, fora do jogo democrático convencional.
Goulart não tinha boas alternativas à mão. Poderia entregar os pontos à direita e renunciar. Poderia também dar um golpe, como quando Getúlio Vargas instaurou o Estado Novo, em 1937. Escolheu um terceiro caminho: usar a voz das ruas para pressionar o Congresso a aprovar as reformas. Agora, era “reforma na lei ou na marra”.
O plano era comparecer a vários grandes Comícios da Reforma nas principais cidades do País, com o apoio de grupos de esquerda: sindicatos, sargentos e marinheiros insubordinados liderados por Brizola, estudantes da UNE, movimentos camponeses e os comunistas do PCB, na época clandestino.
No dia 13 de março de 1964, ocorreu o primeiro e único Comício das Reformas, na Central do Brasil. Reuniu cerca de 150 mil – o que não foi tão difícil, pois ocorreu no horário do rush, bem ao lado dos principais terminais ferroviário e rodoviário do Rio de Janeiro. Lá, de frente ao Ministério da Guerra, anunciou a encampação de refinarias de petróleo privadas e a possibilidade de desapropriar terras às margens de estradas e açudes. Dias depois, propôs ao Congresso uma emenda constitucional para permitir a reeleição do presidente e a candidatura de parentes seus. Assim, Goulart ou Brizola poderiam candidatar-se em 1965.
Goulart poderia renunciar ou tentar um golpe. Preferiu usar a voz das ruas para pressionar o Congresso a aprovar as reformas. Agora, a reforma era na lei ou na marra
A direita, porém, também tinha ao seu lado recursos de poder valiosos. Militares de alta patente estavam preocupados com o “inimigo interno” comunista e com os episódios de quebra de hierarquia de sargentos e marinheiros. Empresários se incomodavam com sindicatos cada vez mais fortes e com a instabilidade econômica. As classes médias se assustavam com o discurso radical da esquerda. Latifundiários temiam a reforma agrária e o fortalecimento de movimentos camponeses.
A resposta conservadora veio em São Paulo, com meio milhão na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no dia 19 de março. Menos de duas semanas depois, militares ligados a movimentos antipopulistas conduziram um golpe de Estado, que depôs Jango. Para evitar o derramamento de sangue, Jango exilou-se, sem resistência.
O POMO DA DISCÓRDIA
As reformas de base eram um grande guarda-chuva que incluía as reformas agrária, política, fiscal, bancária, urbana, administrativa e universitária. Não foram definidas por completo, mas tinham algumas linhas mestras. A reforma agrária incluiria a desapropriação de terras improdutivas ou daquelas que não cumprissem sua função social – em especial as adjacentes a vias públicas ou beneficiadas por investimentos da União, como açudes. A reforma política estenderia o voto a analfabetos, permitiria a reeleição e tiraria o PCB da clandestinidade. Também se propunham um maior controle sobre o capital estrangeiro e uma maior participação do Estado na economia.
Por que Jango caiu?
TESE 1: Golpe preventivo
Setores conservadores temiam que a pressão de movimentos sociais cada vez mais organizados levasse a reformas contrárias a seus interesses: a desapropriação de latifúndios e o controle da remessa de lucros ao exterior. O golpe estancou esses movimentos.
Defensores: Florestan Fernandes, Caio Navarro de Toledo, Jacob Gorender.
TESE 2: Conspiração da direita
O golpe foi resultado de uma grande conspiração capitaneada por militares anticomunistas, empresários, proprietários rurais, setores da igreja, a UDN e o capital internacional, com o apoio da CIA. Para agir, usaram o complexo Ipês-Ibad, entidades femininas conservadoras e jornais.
Defensores: René Dreifuss, Heloísa Starling.
TESE 3: Conjuntura política
As regras da democracia deixaram de ser prioridade tanto para a direita quanto para a esquerda; a radicalização política e a recusa de todas as partes em construir um consenso pela governabilidade levaram ao golpe.
Defensores: Wanderley Guilherme dos Santos, Argelina Figueiredo e Jorge Ferreira.
2. "O Brasil ia virar uma nova Cuba"
A VERDADE: Jango era um político trabalhista, não comunista. A luta armada só ganhou adeptos depois do golpe
“Marxistas estão organizando camponeses no Brasil”, estampava a primeira página do New York Times, no dia 23 de outubro de 1960. O jornal tinha enviado seu correspondente Tad Szulc ao engenho Galileia, nos campos canavieiros de Pernambuco, onde nasceram as Ligas Camponesas – sociedades de ajuda mútua de camponeses que surgiram em 1955 com o mero intuito de prover caixões dignos para seus mortos, mas que chegaram aos anos 1960 como o maior movimento rural do País. Nas palavras exaltadas de Szulc, as Ligas tinham feito do Nordeste brasileiro um criadouro para a “organização e doutrinação” de comunistas, com objetivo de criar um “exército político de 40 milhões”.
Essa história era familiar para a opinião pública americana e refletia um medo comum entre militares brasileiros – o de que comunistas estavam preparando uma guerra revolucionária para fazer do Brasil uma grande Cuba. A movimentação das Ligas no campo e de sindicatos com dirigentes comunistas nas cidades seria um sintoma disso. Mas não era para tanto. Embora a revolução cubana e a figura romântica de Che Guevara pudessem inspirar jovens idealistas, a luta armada estava fora dos planos das esquerdas brasileiras.
Para começar, Jango não era comunista. Marxistas ortodoxos defendem o fim da propriedade privada dos meios de produção. Já Jango era um advogado proprietário de terras gaúchas. Mas esse tipo de detalhe não importava. Nos tempos de Guerra Fria, bastava dialogar com a esquerda para ser comunista. A base eleitoral de Jango sempre foram trabalhadores e as camadas mais pobres. No Ministério do Trabalho de Getúlio (1953-1954), apoiou sindicatos, não reprimiu greves e tentou dobrar o salário mínimo. Acabou demitido. No Planalto, aproximou-se dos movimentos sociais para pressionar o Congresso nas ruas a aprovar reformas. Acabou deposto.
Seu partido, o PTB, também passava longe do comunismo. Pelo contrário, foi criado por Getúlio Vargas, em 1945, para disputar com os comunistas o eleitorado de trabalhadores urbanos. Enquanto o PCB falava em “luta de classes”, o PTB usava o Ministério do Trabalho para domesticar os sindicatos. Assim, Getúlio ficou para a história como “pai dos pobres – e mãe dos ricos”.
Conforme o País se industrializou, uma ala do PTB deu uma guinada em direção a um nacionalismo de esquerda. Quando governou o Rio Grande do Sul (1959-1963), Brizola encampou as companhias americanas que forneciam eletricidade e telefonia no Estado, e ameaçou uma guerra civil para garantir a posse de Jango, em 1961. Mas esse nacionalismo radical não se confundia com comunismo. Estava muito mais próximo do anti-imperialismo do egípcio Nasser, do indiano Nehru e do indonésio Sukarno, líderes que rejeitavam a liderança tanto dos EUA quanto da URSS na Guerra Fria.
Até o velho PCB perdeu o espírito revolucionário. Em 1958, o Partidão renunciou à revolução armada. Em vez de lutar contra a burguesia, seu novo objetivo era chegar ao poder pela via legal, apoiando um governo nacionalista eleito. Jango era o aliado perfeito. Uma vez no poder, o PCB passaria a lutar contra o “imperialismo” (o capital estrangeiro) e o “feudalismo” (o latifúndio). Empurrara com a barriga a “ditadura do proletariado”, com prazo indeterminado.
“Com a posse de Goulart, a ideologia do PCB parecia encontrar uma base real de sustentação política”, afirma Marcelo Ridenti, professor de sociologia da Unicamp. “O chamado populismo de esquerda e o PCB tinham muitos pontos de contato. Ambos reivindicavam a libertação do povo para a construção de uma nação brasileira, independente do imperialismo e livre do atraso feudal remanescente no campo.”
A revolução cubana foi muito bem recebida por todas as correntes ditas progressistas, Mas a adesão à luta armada teve pouco impacto antes do golpe.
Marcelo Ridenti, sociólogo
Mas a direita civil e militar tinha seus motivos para ver a radicalização de outra forma. Desde meados da década de 1950, a Escola Superior de Guerra e outros think tanks de direita divulgavam o temor de que uma guerra não convencional estava em curso no Terceiro Mundo, com o objetivo de implantar o comunismo. Já tinha acontecido na Indochina (1946), em Cuba (1956-1959) e na Argélia (1956-1962). Esse conflito não envolveria Estados, mas um “inimigo interno”, que agiria em todos os níveis da sociedade. Seus meios seriam a doutrinação, a mobilização de massas e a luta armada. No Brasil, só faltaria o último elemento.
Tudo ficava mais ameaçador para a direita com a popularidade da Revolução Cubana entre a esquerda. “Ela foi muito bem recebida por todas as correntes ditas progressistas no início da década de 1960, da esquerda católica aos comunistas, dos trabalhistas aos socialistas”, afirma Ridenti.
Mas não havia risco real de que se instalasse no Brasil uma Cuba do Sul. Uma coisa era celebrar o simbolismo do Davi latino contra o Golias americano. Outra coisa era pegar em armas pela revolução. Enquanto o Brasil foi uma democracia, a luta armada ficou de fora. Em vez disso, a esquerda abraçava a estratégia pacífica do PCB de se aliar a Jango e pressionar por reformas nas ruas. Foi somente com o golpe de 1964 que grupos debandaram do Partidão e abraçaram o modelo de revolução de Fidel Castro. Se essas pequenas e malsucedidas guerrilhas tentaram fazer do Brasil uma segunda Cuba, foi em grande parte em reação ao próprio golpe.
3. "O golpe foi obra dos quartéis"
A VERDADE: Empresários, intelectuais e políticos de direita participaram da conspiração — e da ditadura
Luís Inácio tinha 18 anos quando os militares derrubaram Jango. Trabalhava na metalúrgica Independência, em São Paulo, antes de virar Lula, o sindicalista. “Eu achava que o golpe era uma coisa boa”, disse ao historiador Ronald Costa Couto, em 1998. “Eu trabalhava com várias pessoas de idade. E, para elas, o Exército era uma instituição de muita credibilidade. Eu via os velhinhos comentarem: ‘Agora vão consertar o Brasil, agora vão acabar com o comunismo’. Essa era a minha visão na época.”
A participação civil foi essencial para o sucesso do golpe de 1964. E isso não se limitou aos aplausos dos ingênuos, como o jovem Lula e as senhoras católicas que organizaram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ainda no governo JK (1956-1960), uma rede conspiratória começou a se formar em organizações patronais, como a Fiesp, e na Escola Superior de Guerra (ESG). Empresários, políticos da UDN, intelectuais conservadores e militares se aproximavam para fazer campanha contra o excesso de intervenção do Estado na economia, as restrições para o capital estrangeiro, a ameaça de inimigos internos comunistas e a corrupção dos chamados políticos “populistas”.
JK era o alvo preferido. Ele morava em Ipanema num apartamento de um amigo banqueiro. O prédio foi erguido pelas empreiteiras para as quais tinha concedido a construção da Ponte da Amizade. O mesmo consórcio também foi acusado de fazer benfeitorias num terreno que JK tinha ganhado do governo paraguaio na região de Foz do Iguaçu.
A campanha anticorrupção ajudou a eleger Jânio Quadros (PTN), em 1961, coligado à conservadora UDN. Mas o vassourinha não durou mais que sete meses na presidência, e sua renúncia ressuscitou o fantasma populista, na figura de Jango (PTB), agora com o apoio de movimentos sociais.
Frustrada, a direita convenceu-se de que não dava mais para deixar a direção do País só nas mãos de políticos. Foi então que aquela ampla rede conspiradora se formalizou num think tank de direita. Nascia o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês).
Em dois anos, o Ipês já tinha cerca de 500 sócios, incluindo Esso, Mesbla, Rhodia, Arno, Sul América, Antarctica Paulista, Varig e Light. Junto ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática, formou o que o historiador René Dreifuss chama de “complexo Ipês-Ibad” – o principal núcleo conspirador do golpe.
QG civil
O Ipês ocupava 13 salas no 27º andar do edifício Avenida Central, no Rio. Publicamente, dizia promover a “educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”. Em sua face visível, abrigou intelectuais como a escritora Rachel de Queiroz, o poeta Alceu Amoroso Lima e os economistas Mário Henrique Simonsen, Antônio Delfim Netto, Otávio de Bulhões e Roberto Campos. Organizava pesquisas, estudos e debates sobre economia e política e publicava artigos na imprensa. Distribuiu 14 filmes de propaganda anticomunista, exibidos no cinema e em projeções populares em caminhões. Só em 1963, lançou 2,5 milhões de impressos, entre livros, apostilas e folhetos.
E o Ipês ia além da propaganda. Financiou candidatos conservadores nas eleições de 1962 e movimentos conservadores de estudantes, religiosos e mulheres. Manteve um relacionamento próximo com jornais, rádios e televisões, incluindo Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e o grupo Diários Associados. No Congresso, formulou anteprojetos de lei e militou contra Jango junto à Ação Democrática Parlamentar – a frente parlamentar de direita que reuniu UDN, a direita do PSD e partidos menores.
As Forças Armadas até hoje são ressentidas com a sociedade brasileira. Ela foi uma das responsáveis pela revolução de 1964, e hoje em dia a mídia não se cansa de nos jogar na cara que somos torturadores.
General Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército de José Sarney (1985-1990)
Mas a articulação mais importante foi com os militares egressos da ESG. De lá vieram os quadros de seu Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva – um militar reconhecido por dois motivos. Um, por formular a Doutrina de Segurança Nacional, que defendia o alinhamento do Brasil aos EUA na Guerra Fria contra o “inimigo interno” comunista. Outro, pelo histórico conspirador. Golbery participara de complôs militares contra Getúlio (1954), JK (1955) e Jango (1961). Agora, pôde fazer do GLC um verdadeiro serviço secreto a serviço dos golpistas. Com três mil telefones ilegalmente grampeados, produzia relatórios em que avaliava a situação política e delineava estratégias de ação dos conspiradores.
Mais do que desestabilizar Goulart, o Ipês gestou o embrião do regime militar. Lá conviveram atores políticos, econômicos e militares que entrariam em cena na ditadura. Seus maiores colaboradores técnicos assumiriam os ministérios do Planejamento e da Fazenda. Parte de seus políticos entrou para a Arena, o partido da ditadura. E o GLC de Golbery deu origem ao Serviço Nacional de Inteligência (SNI). Em certa medida, o governo de Castelo Branco (1964-1967) foi gestado em pleno governo Jango, num casamento íntimo entre civis e militares. O golpe esteve longe de ser uma mera quartelada.
4. "Os militares eram unidos"
A VERDADE: Nas Forças Armadas havia governistas, conspiradores legalistas e radicais e até rebeldes de esquerda
A facilidade em derrubar Jango pode passar a impressão de que os militares fossem um grupo golpista homogêneo e bem coordenado. A verdade é o oposto. Quando as tropas do general Olympio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, MG, em direção ao Rio, no dia 31 de março, os próprios conspiradores foram pegos de surpresa. “A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro, ora com uma tempestade de boatos”, escreve Elio Gaspari em A Ditadura Envergonhada.
Na verdade, as Forças Armadas estavam divididas. Oficiais fiéis a Jango ocupavam os principais postos do Exército. Já no andar de baixo, sargentos e suboficiais esquerdistas vinham ameaçando a hierarquia militar desde a Campanha da Legalidade de Brizola, em 1961.
No campo conservador, a elite militar egressa da ESG (apelidada “Sorbonne”) juntava-se a civis no Ipês para conspirar contra Jango. Seu plano: fazer uma intervenção cirúrgica, para expurgar a política de “corruptos” e “subversivos”, e devolver o poder aos civis nas eleições seguintes. Já oficiais de média e baixa patentes se preocupavam menos com a legalidade e mais com o aprofundamento de uma “revolução” anticomunista. Entraram para a história como a “linha dura”.
Assim, vários cenários golpistas poderiam se esboçar durante o governo de Jango. A questão era saber quem agiria – os sargentos insubordinados, o dispositivo militar do governo, os conspiradores da Sorbonne ou a linha dura.
Com a radicalização política no início de 1964, grupos buscaram seus líderes. A Sorbonne cooptou o marechal Castelo Branco, exatamente por ser considerado um militar sofisticado e legalista. Chegou até a defender a posse de Jango em 1961, por obediência à Constituição. Era a pessoa certa para que o golpe não se parecesse coisa de republiqueta de banana. Já a linha dura aproximou-se do general Costa e Silva, que satisfazia a imagem de militar gorila.
O plano de Castelo, Ernesto Geisel e Golbery era coordenar uma rede de militares conspiradores. Tropas de Minas Gerais e de São Paulo marchariam para o Rio, e lá tomariam o Ministério da Guerra. Só que o núcleo mineiro se exaltou antes da hora. O general Mourão, à beira da aposentadoria compulsória, não quis ficar fora da história. Com o apoio do governador de Minas, marchou no dia 31 de março, mais de uma semana antes do combinado.
Em São Paulo, o comandante do 2º Exército não acreditava. “Isso não passa de uma quartelada do Sr. Mourão; não entrarei nela”, disse o general Amaury Kruel a um emissário. Enquanto o sol raiou, o golpe parecia fadado ao desastre.
À noite, os militares governistas começaram a debandar. Kruel ligou para o presidente pedindo que demitisse os ministros mais à esquerda. Jango não consentiu. “General, eu não abandono meus amigos”, disse. Então Kruel o traiu, e liberou o flanco paulista do golpe.
Assim, praticamente sem confrontos, o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou golpista no dia 1º de abril.
ANARQUIA FARDADA
28.ago.1961: Oficiais do 3º Exército (Sul) e sargentos da Aeronáutica desobedecem às ordens das Forças Armadas e aderem à Campanha da Legalidade – um levante liderado por Brizola para defender a posse de Jango.
12.set.1963: Cerca de 600 sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha rebelam-se em Brasília. Ocupam prédios públicos, cortam todas as comunicações com a capital e detêm oficiais, o presidente do STF e o presidente interino da Câmara.
25.mar.1964: Quase dois mil marinheiros e fuzileiros navais comemoram o aniversário de sua associação, ilegal por ter caráter sindical. O ministro da Marinha envia cem fuzileiros para prendê-los. Em vez disso, aderem à rebelião. O Exército intervém e prende os líderes, mas Jango os anistia.
30.mar.1964: Em seguida ao incidente da Marinha, Jango discursa na associação de subtenentes e sargentos da PM carioca. Foi o último discurso do presidente.
5. "Militares não apoiavam Jango"
A VERDADE: Oficiais Janguistas ocupavam os principais postos, enquanto os conspiradores estavam isolados
O governo Jango acreditava ter duas bases infalíveis: um “dispositivo sindical” e um “dispositivo militar”. Para se blindar contra conspiradores militares, o presidente colocou generais fiéis a ele nos principais postos do Exército: o Ministério da Guerra e os comandos das principais regiões militares brasileiras, correspondentes ao Sul e ao Sudeste.
Já os generais conspiradores estavam asilados em posições de pouco poder nas Forças Armadas. O general Orlando Geisel ocupava a Subdiretoria de Material de Engenharia; seu irmão Ernesto Geisel estava na 2ª Subchefia do Departamento de Provisão Geral. Artur da Costa e Silva comandava o Departamento de Produção e Obra. E Golbery passou voluntariamente para a reserva.
Com governistas no comando e conspiradores isolados, nada parecia indicar que a base militar do governo derreteria praticamente sem resistência entre a tarde de 31 de março e a manhã do 1º de abril. Mas o apoio do alto oficialato ao governo não era irrestrito. O ponto fraco do aparelho militar estava na condescendência com que Jango lidava com a quebra de disciplina militar [veja quadro acima]. Altos oficiais podiam discordar entre si. Mas a maioria esteve disposta a deixar de lado temporariamente suas diferenças quando entrou em jogo o princípio que sustenta as Forças Armadas – a hierarquia.
6. "O golpe foi criado pelos EUA"
A VERDADE: Os americanos ajudaram os conspiradores, mas os autores e atores do golpe foram brasileiros
Em junho de 1962, o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, reuniu-se com o presidente John Kennedy para discutir a situação política brasileira. A Casa Branca tinha acabado de instalar um sistema de gravação clandestina no Salão Oval, e a primeira conversa interceptada colocava Jango na berlinda. “Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. Ele está entregando o país aos…”, disse Gordon, ao que Kennedy completou: “aos comunistas”.
Essa era uma virada na relação dos EUA com o Brasil. Até a década de 1950, as grandes preocupações dos EUA estavam longe da América Latina. A URSS desenvolvia a largos passos seu programa balístico e espacial; a CIA orquestrava um golpe no Irã (1953); o exército americano entrava na Guerra da Coreia (1950-53); o Egito nacionalizava o Canal de Suez (1956), e o Vietnã do Norte ameaçava expandir o comunismo no Sudeste Asiático.
Mas o ano de 1961 trouxe as atenções dos EUA para cá. Em 1959, Fidel Castro venceu a Revolução Cubana. O movimento causava preocupação por causa de investimentos americanos na ilha, mas não chegava a ser uma grande ameaça geopolítica. Fidel ainda não tinha se convertido ao comunismo. Era apenas um líder nacionalista que derrubara o ditador Fulgêncio Batista (1952-1959). Chegou mesmo a posar para foto com o então vice-presidente Richard Nixon, numa viagem aos EUA, quatro meses depois da revolução.
Apesar de todo o poderio militar mobilizado pelos EUA, nenhum brasileiro, civil ou militar, participou da deposição porque os EUA a desejavam.
Elio Gaspari, jornalista
Isso mudou quando Fidel nacionalizou propriedades americanas em Cuba. Em reação, os EUA recrutaram cubanos em Miami para invadir Cuba pela Baía dos Porcos. A invasão fracassou, e levou Cuba a buscar proteção do único rival militar dos EUA. Foi assim que Cuba se tornou um satélite soviético a pouco mais de 100 km da Flórida.
A partir da guinada comunista de Cuba, qualquer movimentação de esquerda na América Latina passou a soar o alarme em Washington. Isso incluía Jango, que, segundo os temores dos EUA, perigava de instaurar “ditadura pessoal e populista”. Os sinais pareciam claros. Já em 1959, Brizola encampara as companhias americanas ITT e Bond and Share no Rio Grande do Sul. Agora, Jango defendia o controle de remessas de lucros ao exterior e a nacionalização de refinarias estrangeiras. No topo disso, tinha o apoio de movimentos sociais camponês, operário e estudantil e de militares rebeldes de baixa patente.
Por tudo isso, é tentador afirmar que o golpe foi orquestrado pelo governo americano. Mas quem geriu a conspiração contra Jango não foram os EUA. Foram civis e militares brasileiros que desde os tempos de Getúlio combatiam o que chamavam “populismo”. “Nem as direitas eram manipuladas pelo imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro ou pelo dedo de Moscou”, escreve o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, da UFF. “Jargões de época, de considerável eficácia propagandística, não dão conta da autonomia política de que dispunham as forças antagônicas.”
O professor de história americana da USP Sean Purdy tem uma avaliação semelhante. “Nenhum golpe apoiado pelos americanos teria acontecido sem que o País tivesse forças internas para articulá-lo. Os EUA têm a sua culpa, mas, também no caso do Brasil, havia parte da sociedade que apoiava a derrubada do governo.”
Dizer que os atores do golpe foram nacionais, claro, não significa ignorar a simpatia com que os americanos viam os conspiradores [leia abaixo]. Eles bancaram projetos de desenvolvimento em Estados governados por opositores de Jango, acenaram apoio a qualquer golpe que derrubasse esquerdistas, financiaram o complexo Ipês-Ibad, mantiveram um intercâmbio militar e prepararam uma megaoperação de apoio ao golpe – que acabou não sendo posta em prática porque os generais brasileiros derrubaram Jango antes mesmo do previsto.
Assim, a ajuda americana acabou não sendo decisiva para o golpe. Mas, se os quartéis não tivessem conseguido derrubar Jango por conta própria, já tinham um irmão com quem contar. Dificilmente o falcão do Norte apreciaria que a crise do governo Goulart continuasse a se agravar. Afinal, como o presidente americano Nixon diria mais tarde para o general Médici, numa visita oficial aos EUA em 1971, “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.
O falcão, a onça e as vivandeiras
Os EUA não derrubaram Jango, mas foram generosos com os conspiradores civis e militares
Aliança para o Progresso
Nesse programa de ajuda externa, Kennedy presenteava governos latino-americanos anticomunistas com hospitais, escolas e conjuntos habitacionais. Assim, esperava neutralizar o apelo revolucionário de Cuba na região. A Aliança para o Progresso beneficiou governadores estaduais oposicionistas, como Carlos Lacerda (Guanabara), Luís Magalhães Pinto (MG) e Ademar de Barros (SP). Já o governo de Jango ficou de fora.
Apoio automático
Em março de 1964, o coordenador da Aliança para o Progresso, Thomas C. Mann, reuniu-se com todas as autoridades do governo americano envolvidas com América Latina. Do encontro saiu a Doutrina Mann: os EUA apoiariam qualquer governo, desde que fosse anticomunista. O New York Times questionou se a doutrina não seria carta branca para militares golpistas. Mann respondeu: “cada caso é um caso”.
Operação Brother Sam
Os EUA nunca intervieram militarmente no Brasil, mas chegaram a preparar uma operação de apoio, caso os golpistas tivessem dificuldades. Mobilizaram no Caribe um porta-aviões, um porta-helicópteros, tropas de paraquedistas, seis contratorpedeiros com cerca de 100 toneladas de armas e quatro petroleiros. A estrutura chegaria à costa sudeste brasileira entre 8 e 13 de abril. Só que os militares anteciparam o golpe em uma semana, e a operação foi abortada.
Financiamento à oposição
Em 1962, o embaixador Lincoln Gordon e o presidente Kennedy concordaram em não derrubar Jango – mas, por via das dúvidas, mantiveram a carta golpista no baralho. O ano era de eleições legislativas, e os americanos liberaram uma enxurrada de dólares para políticos brasileiros de oposição. A verba teria ajudado mais de 200 candidatos ao Senado, Câmara Federal e Assembleias Estaduais.
Intercâmbio militar
Militares brasileiros e americanos iniciaram um convívio próximo ainda em 1944, quando o Brasil enviou a Força Expedicionária à Itália. Centenas foram estudar na Escola das Américas, centro de treinamento dos EUA no Panamá, e no National War College. Em 1962, os EUA enviaram ao Rio como adido militar Vernon Walters, veterano da 2ª Guerra, que chegou a dividir quarto com o futuro presidente Castelo Branco.
Propaganda
Os EUA foram financiadores de primeira ordem do complexo oposicionista Ipês-Ibad, que produzia propaganda anticomunista e contra Jango no rádio, na TV, no cinema e na imprensa. Também distribuía livros para oficiais e projetava filmes doutrinadores em quartéis, bases, escolas e navios. Só em 1963, foram realizadas 1.706 projeções.
7. "A ditadura brasileira foi branda"
A VERDADE: Os generais queriam parecer legítimos, mas endureceram o regime, que durou mais de duas décadas
A ditadura militar brasileira matou pelo menos 434 pessoas por motivos políticos. É menos que os 3.065 da ditadura chilena (1973-1990) e os estimados 30 mil da ditadura argentina (1976-1983). O Congresso permaneceu aberto, com exceção de três períodos que somam menos de um ano, e as eleições legislativas ocorreram conforme o calendário. E não houve uma ditadura pessoal, como aconteceu no Chile, com Augusto Pinochet (1973-1990), no Paraguai, com Alfredo Stroessner (1954-1989), ou mesmo no Estado Novo, com Getúlio Vargas (1937-1945).
É por comparações assim que algumas pessoas consideram o regime militar uma “ditabranda”. Engano. Na verdade, a ditadura se empenhou exatamente em manter uma aura de legitimidade. Uma das grandes preocupações dos generais era não fazer o Brasil parecer mais uma republiqueta bananeira. Mas por trás da aparente brandura escondia-se a dureza.
Para começar, os assassinatos políticos e a tortura. Todos os generais presidentes negavam a prática, como se fossem resultado da ação de alguns poucos radicais. Mas foram não apenas omissos com abusos, como também chancelaram a criação do sistema DOI-Codi, que fez da tortura e do extermínio uma política de Estado.
O Congresso também permaneceu aberto a maior parte da ditadura. Mas isso só foi permitido com o fim dos partidos políticos, a cassação de 173 deputados e a perda dos direitos políticos de 509 opositores. Como se não bastasse, toda vez que a oposição ameaçava crescer, os militares alteravam a legislação eleitoral no meio do jogo. Assim, era fácil dar a impressão de haver disputa política – e, ao mesmo tempo, impedir qualquer alternância no poder.
A ditadura ainda manteve o acesso à Justiça, mas só para os crimes comuns. Já os crimes políticos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, foram levados para a Justiça Militar. E, conforme a máxima atribuída a Georges Clemenceau, “a Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar está para a música”.
Operação limpeza
Nenhum presidente desse período foi democrático, mas alguns se preocupavam mais com a legitimidade do que outros. Castelo Branco planejava uma rápida limpeza para retirar da política os que considerava “subversivos” ou “corruptos”. Em seguida, convocaria eleições diretas e devolveria o País aos civis. Não é de surpreender que Carlos Lacerda, pré-candidato pela UDN, tenha saudado o golpe com lágrimas: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado!”
Em vez de jogar fora a Constituição de 1946, a ditadura inventou uma jabuticaba jurídica: o Ato Institucional, que fazia a chamada “revolução vitoriosa” caber no ordenamento jurídico anterior. Apesar de acabar com a eleição presidencial direta e permitir expurgos políticos, o AI não eliminava direitos civis como a liberdade de expressão e a garantia de habeas corpus, mesmo em casos de crime político.
NA DITADURA OCORRERAM
– 6.016 denúncias de tortura
– 434 mortos ou desaparecidos
Originalmente, o AI não tinha número – afinal, deveria ser um só. Mas a ditadura outorgou 17. Isso porque os militares não se limitavam ao aparente legalismo de Castelo. Os generais eram um grupo heterogêneo. Eles sabiam muito bem o que não queriam: corruptos, populistas e comunistas. Mas não concordavam sobre o que queriam. Enquanto os castelistas mantinham certos pudores constitucionais, a linha dura pressionou pelo aprofundamento da ditadura. E conseguiu. Em outubro de 1965, o presidente já assinava o AI-2, que instaurava de vez as eleições indiretas, aumentava os poderes do presidente e acabava com os partidos políticos. Agora, era só a Arena, governista, e o MDB, oposição consentida pelo governo.
“Castelo realmente pensava que poderia encerrar o período revolucionário; queria a eleição de um presidente civil, da área política, para que o País entrasse em regime normal”, disse Ernesto Geisel a pesquisadores do CPDOC, da FGV. “Isso tudo foi obstado, porque os mais radicais, que nós chamamos de linha dura, exerceram pressões, envolvendo os próprios políticos, que por sua vez preferiram eleger o Costa e Silva.”
Ano rebelde
Conforme o regime militar se prolongava, o apoio da população diminuía. O milagre econômico ainda não tinha começado, os salários vinham caindo, e Seleção não tinha sequer passado da primeira fase na Copa de 1966. A aura de legitimidade se apagava. Apoiado pela linha dura, Costa e Silva tomou posse em março de 1967, cheio de ambiguidades. Ao Congresso, prometia abertura; aos militares, continuação do regime. Enquanto isso, o movimento estudantil se organizava para demandar novas liberdades, e a esquerda armada começava a se mobilizar. Em abril, o regime desmontava a Guerrilha do Caparaó, liderada por Brizola. Em agosto, o líder comunista Carlos Marighella participava em Havana de uma conferência de guerrilhas latino-americanas. No final do ano, abandonou o PCB, que continuava contra as armas, e formou a Ação Libertadora Nacional (ALN), maior grupo guerrilheiro da época.
Era questão de tempo para o País entrar em convulsão. O gatilho do ano rebelde veio em março de 1968, quando a polícia matou a tiros o secundarista Edson Luís num protesto contra os preços do Calabouço, um restaurante estudantil no centro do Rio. Isso desencadeou uma onda de manifestações contra o regime a que se uniram estudantes, artistas, religiosos, políticos de oposição. O fantasma das greves também assombrou em Contagem (MG), Osasco e São Bernardo do Campo (SP), e a guerrilha urbana começava a escalar.
Membros da ALN assaltavam bancos, passando-se por criminosos comuns. Na madrugada de 26 de junho, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) lançou um caminhão com 15 quilos de dinamite contra o Quartel General do 2º Exército, próximo ao Ibirapuera, em São Paulo. Matou o soldado Mário Kozel Filho e feriu outros seis militares. Por outro lado, militares indisciplinados estouravam bombas em teatros, universidades e missões diplomáticas de países socialistas, e grupos de extrema-direita agrediam artistas e estudantes.
A linha dura pressionava no vai ou racha. Usando como pretexto um discurso do deputado Moreira Alves, que defendia a desobediência civil contra militares, Costa e Silva baixou na sexta-feira 13 de dezembro de 1968 o AI-5. Agora, o presidente poderia fechar o Congresso, intervir nos Estados e municípios, cassar mandatos e suspender a garantia do habeas corpus – tudo sem apreciação judicial. A ditadura se escancarava.
Capitães do mato
Os grupos armados eram uma novidade para a qual os órgãos de segurança estaduais não estavam preparados. Agora, com os poderes excepcionais garantidos pelo AI-5, a ditadura pôde criar uma nova estrutura repressiva, especializada no combate a organizações de esquerda. O protótipo surgiria em São Paulo, em junho de 1969: a Operação Bandeirante.
A Oban, sediada a cinco minutos do Quartel General do 2º Exército, integrava Forças Armadas, PF, SNI, SSP, Dops, Guarda Civil Metropolitana e Força Pública de SP num único organismo autônomo e extraoficial. Era uma anomalia que atravessava a hierarquia militar. Sem dotação orçamentária oficial, dependeu de doações de empresários e políticos paulistas para virar realidade.
PUNIÇÕES POLÍTICAS
– 154 militares transferidos para a reserva
– 752 militares reformados
– 509 suspensões de direitos políticos
– 1.784 demissões
– 1.167 aposentadorias
– 566 mandatos cassados
– 443 outras punições
Um de seus funcionários mais notórios foi o delegado da Polícia Civil Sérgio Paranhos Fleury, líder do Esquadrão da Morte, grupo que ganhou celebridade por executar criminosos comuns. Somado a ele estavam policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais, conhecido pelo uso de tortura em interrogatórios. Agora, seus variados métodos foram incorporados ao combate à subversão. As denúncias de tortura subiram de 308, somadas de 1964 a 1968, para 1.027 em 1969.
Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) assumiu a presidência em 30 de outubro. Satisfeito com os resultados da Oban, decidiu institucionalizá-la e replicá-la nas outras regiões militares do País. Assim, criou os Centros de Operações de Defesa Interna (Codi), responsáveis pelo planejamento de operações de repressão política, e os Destacamentos de Operações e Informações (DOI), encarregados de colocar essas operações em prática.
“Foi a mesma coisa que matar uma mosca com um pilão”, disse o general Adyr Fiúza de Castro, fundador do CIE e chefe do Codi do Rio, a pesquisadores do CPDOC da FGV. “O método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca, quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou espantá-la.”
No início, o DOI-Codi se dedicava a desmontar as organizações armadas recorrendo à tortura. São Paulo, porém, mostrou novamente seu vanguardismo em janeiro de 1971, quando o general Humberto de Sousa Melo, comandante do 2º Exército, adotou o extermínio e o desaparecimento de corpos como método padrão da repressão em São Paulo. Assim se institucionalizou o “desaparecimento” político – tarefa realizada com o auxílio de centros clandestinos de tortura e assassinato, cuja criação só foi possível pela grande autonomia dada ao DOI-Codi.
No início de 1974, a luta armada urbana estava desarticulada, com militantes presos, banidos, exilados, mortos ou desaparecidos. No campo, restava a Guerrilha do Araguaia, que seria dizimada ao final do mesmo ano.
Lenta e insegura
Sem mais desculpas para o chumbo, o presidente Ernesto Geisel (1974-1979) anunciou em agosto uma política de “distensão lenta, gradual e segura”. Mas restava um grande problema – o bloco anárquico nas comunidades de segurança e informações, ou, como Elio Gaspari prefere dizer, a “tigrada”. A autonomia dada a esses insubordinados da direita militar transformou-os num poder paralelo. Agora, sem rebeldes para reprimir, a tigrada perdia a razão de ser. Só uma coisa poderia livrá-la da extinção: um novo inimigo.
Para o Centro de Informações do Exército (CIE), o novo inimigo do regime era a paz. Sim. O clima de tranquilidade que seguiu à derrota da esquerda armada seria apenas uma ilusão criada pelas esquerdas. Sua verdadeira intenção seria desarmar o espírito dos órgãos de segurança para derrotá-lo. Assim, a repressão seria necessária com ou sem a ação do “inimigo interno”.
Já o DOI-Codi de São Paulo elegeu como novo inimigo o velho e decadente PCB – exatamente aquele que tinha renunciado às armas ainda em 1958. O DOI-Codi iniciou uma série de prisões, torturas e assassinatos que desembocaram na morte do diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, em outubro de 1975. O jornalista foi torturado até morrer. Depois, seu corpo foi preso pelo pescoço com uma cinta a uma janela de 1,63 metro, para simular suicídio. Passados três meses, o metalúrgico Manuel Fiel Filho foi morto em condições semelhantes a Herzog.
Pegou mal. A essa altura, um amplo movimento encabeçado pela Igreja Católica escancarava para o mundo que a ditadura torturava e matava. Estava claro para Geisel que seu maior inimigo não era mais a esquerda – que se convertera à campanha pela redemocratização -, mas a tigrada anárquica nas Forças Armadas. Um dos tigres mais ameaçadores era o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que tentava articular a própria candidatura à sucessão presidencial com o apoio da linha dura. Geisel demitiu-o em 1977.
Coito rompido
Nas eleições de 1974, candidatos puderam, pela primeira vez na ditadura, participar de debates em rádio e televisão. O resultado assustou Geisel. O MDB dobrou sua bancada na Câmara, com 161 dos 364 assentos; no Senado, conquistou 16 das 22 vagas em disputa. O resultado indicava uma abertura mais rápida do que o previsto na “distensão lenta, gradual e segura” de Geisel. Então, ele fez o que a ditadura fazia melhor – mudar as regras no meio do jogo.
Nas eleições seguintes, de 1976, candidatos foram obrigados a limitar sua propaganda à exibição de uma fotografia e à narração de seu currículo. Era o tédio contra a democracia. No ano seguinte, Geisel fechou o Congresso e impôs o “Pacote de Abril”. Com ele, um terço dos senadores seria eleito indiretamente; Estados governistas ganharam representação proporcionalmente maior na Câmara, e o mandato presidencial do presidente seguinte passou para seis anos. Com isso, Geisel conseguiu que o Congresso elegesse seu candidato – João Baptista Figueiredo (1979-1985). Mas a abertura continuou.
Castelo realmente pensava que poderia encerrar o período ‘revolucionário’. Isso foi obstado porque os mais radicais pressionaram a eleger Costa e Silva.
General Ernesto Geisel
Dias depois da eleição, o Congresso derrubou todos os Atos Institucionais – inclusive o AI-5. Em agosto de 1979, Figueiredo assinou a Lei da Anistia, válida tanto para militantes presos e torturados durante o regime quanto para os agentes da repressão. E os partidos voltaram à legalidade.
Militares radicais continuaram a agir, mas de forma cada vez mais clandestina. Explodiram bancas que vendiam publicações de esquerda. Em agosto de 1980, enviaram uma carta-bomba ao presidente da OAB; a secretária abriu e morreu. Um dos autores da carta morreu no ano seguinte, com uma bomba em seu colo, num Puma estacionado no Centro de Convenções Riocentro. A poucos metros, 20 mil pessoas assistiam a um show em comemoração ao Dia do Trabalhador, com músicos de esquerda. Para não comprar briga com os militares que apoiavam os atentados, Figueiredo fez vista grossa à obstrução das investigações do Riocentro.
Em seus estertores, a ditadura tinha um governo desmoralizado, uma economia em franca recessão, uma Câmara com 51% dos deputados na oposição e um acumulado de 6.016 denúncias de tortura e centenas de mortos e desaparecidos. A ditadura brasileira foi longa, dura e sem ternura.
CASSAÇÕES NA CÂMARA
MDB – 76
PTB – 37
Arena – 31
PSD – 9
PSP – 7
UDN – 3
PDC – 3
Total – 166
8. "A Arena só dizia sim aos militares"
A VERDADE: A agremiação governista chegou a desafiar os militares. Mas o resultado foi desastroso
Às vésperas do Dia da Independência, o deputado Márcio Moreira Alves (MDB) bradava na Câmara um discurso instando a desobediência civil. “A presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas!” Era 2 de setembro de 1968, época em que as manifestações contra a ditadura viviam seu auge. Em seguida, Moreira Alves sugeriu que namoradas de cadetes e de jovens oficiais aderissem à resistência. “Seria preciso que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas.”
A imprensa ignorou a fala. Passadas mais de duas semanas, militares distribuíram o discurso pelos quartéis, afirmando que as Forças Armadas vinham sendo humilhadas e enxovalhadas pelo Congresso. O procurador-geral da República entrou com um pedido para cassar o mandato de Moreira Alves. Quando, porém, o pedido foi a plenário na Câmara, no dia 12 de dezembro, uma ala da Arena egressa da UDN votou contra – inclusive o presidente nacional da Arena, o senador Daniel Krieger. O pedido do governo foi derrotado por desmoralizantes 216 a 141.
“Seguiu-se verdadeiro pandemônio no plenário da Câmara”, relata o brasilianista americano Thomas Skidmore. “Alguém começou a cantar o hino nacional e todos fizeram o mesmo. Os deputados congratulavam-se mutuamente por sua coragem. A emoção de haverem desafiado os militares era contagiante.” Essa foi a mais memorável demonstração de autonomia da Arena, que em setembro já tinha protestado na Câmara contra a repressão policial na Universidade de Brasília.
A reação militar, porém, já viria na noite seguinte, em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5. O Congresso ficou fechado até outubro de 1969.
9. "O governo Castelo foi moderado"
A VERDADE: Apesar do suposto legalismo, Castelo foi omisso com a tortura, perseguiu políticos e cedeu para a linha dura
Mesmo depois de assinar o Ato Institucional, Castelo conservava uma áurea de legalismo. “Cada episódio fora da lei é um passo atrás na opinião pública e uma restrição no estrangeiro”, escreveu em setembro de 1964. Na prática, porém, seu governo foi o início de um gradual fechamento político. “Castelo Branco foi complacente com as arbitrariedades da linha dura”, afirma o historiador da Carlos Fico, da UFRJ. “Ele não teve forças para enfrentá-la e permitiu, assim, que o grupo de pressão fosse conquistando, paulatinamente, mais espaço e poder.”
O AI foi pensado para ser único, como já dissemos. Castelo outorgou quatro e abriu espaço para que seus sucessores assinassem outros 13. Acabou com os partidos políticos, que tiveram que se reorganizar entre a Arena, governista, e o MDB, de oposição consentida. Cassou 386 mandatos e demitiu 2 mil funcionários públicos por motivos políticos. Sancionou a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e decretou uma Lei de Imprensa restritiva.
A tortura durante o governo Castelo é particularmente subestimada. O instrumento básico para os militares investigarem suspeitas de corrupção e subversão eram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs). A autonomia dos IPMs deu poder à linha dura e permitiu que algumas guarnições militares recorressem à tortura muito antes da criação da Oban e dos DOI-Codi. Houve 203 denúncias em 1964, sobretudo no Nordeste, SP e RJ. O número depois caiu, muito por conta de uma campanha da imprensa, quando ainda não havia censura prévia. Ainda assim, não houve punição aos torturadores, e a garantia de impunidade serviu de bandeira verde para a linha dura no futuro.
10. "Brasil e EUA eram aliados"
A VERDADE: Depois de uma breve aproximação no governo Castelo, os atritos entre os dois países só cresceram
Em maio de 1964, Castelo Branco rompeu relações diplomáticas com Cuba. Depois, anulou a Ordem do Cruzeiro do Sul que Jânio Quadros concedera a Che Guevara três anos antes. Não faltaram gestos simbólicos para Castelo demonstrar seu alinhamento aos EUA. E, às vésperas do primeiro aniversário do golpe, viria um ato concreto – o envio de 1.250 militares brasileiros à República Dominicana. O país caribenho passava por uma guerra civil, e os EUA temiam que se tornasse uma nova Cuba. Para não intervirem sozinhos, os EUA buscaram parceiros na Organização dos Estados Americanos (OEA). Tiveram adesão de Honduras, Paraguai, Nicarágua, Costa Rica, El Salvador – e Brasil.
Foi assim que, durante o curto governo de Castelo, o Brasil se sujeitou a ser um sócio minoritário no polo ocidental da Guerra Fria. Trocou o termo “independência” por “interdependência”. Esperava-se que, com o alinhamento, viessem a modernização das Forças Armadas, vantagens comerciais e investimentos estrangeiros. Para o então chanceler Juracy Magalhães, “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.
O problema é que, em meados da década de 1960, o Brasil não oferecia muito aos EUA. Por exemplo, o embaixador americano no Vietnã do Sul pediu, em 1965, tropas brasileiras para a guerra contra os vietcongues. O então ministro da Guerra, Costa e Silva, negou o pedido. Foi o sinal de que o alinhamento não era unanimidade.
O alinhamento de Castelo não passou de um passo fora da cadência na política externa brasileira. Até o golpe, o Brasil não pendia para nenhum dos lados da Guerra Fria – estava mais interessado em exportar e atrair investimentos do que em julgar a política doméstica alheia. Bastou Costa e Silva tomar posse, em 1967, para que conceitos de “interdependência” e “ocidentalismo” fossem substituídos gradativamente por “soberania” e “desenvolvimento”.
A mudança teve seu preço, e as relações entre Brasil e EUA esfriaram rapidamente. A primeira bordoada veio quando Costa e Silva não foi à reunião da OEA de 1967 sobre segurança coletiva – tema que causa repulsa em qualquer soberanista. Em 1968, o general recusou-se a assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) – acordo que obrigaria o Brasil a renunciar a um programa nuclear bélico, sem cobrar o mesmo das potências nucleares. Os EUA, por sua vez, compraram brigas comerciais contra o café solúvel, os têxteis e o açúcar brasileiros. As relações pioraram no governo Médici, quando o Brasil estendeu seu mar territorial para 200 milhas, contrariando os interesses de pesqueiros americanos.
Com a primeira crise do petróleo, o governo Geisel abraçou de vez o universalismo dos tempos de Jânio e Jango. Com o petróleo caro e as exportações prejudicadas pelo protecionismo americano, Geisel correu atrás de novos parceiros. Da Europa Ocidental e do Japão vieram investimentos. Dos árabes, petróleo e petrodólares. O Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a China comunista (1974), fortaleceu o comércio com o Leste Europeu e reconheceu imediatamente a independência de Angola e Moçambique, governados por marxistas. Em 1975, assinou um acordo nuclear com a Alemanha.
Em resposta, o presidente Jimmy Carter (1976-1980) lançou uma cruzada pelos direitos humanos. Nas palavras de Carter, o apoio à ditadura brasileira tinha sido “um exemplo da pior face da política externa americana”. Geisel considerou a fala uma ingerência nos assuntos internos, e denunciou um acordo militar que havia assinado com os EUA ainda em 1952. Era o ponto mais baixo da relação entre os dois países. Embora convidado, Geisel nunca visitou os EUA.
Mas distanciamento não significa hostilidade. Os EUA continuaram a ver o Brasil como uma potência capaz de promover estabilidade na América Latina. Conforme Richard Nixon (1969-1974) tinha dito a Médici, “aonde o Brasil for, o resto da América Latina vai também”. E, de fato, várias ditaduras latino-americanas seguiram a brasileira na década de 1970.
Quando os generais irritaram os EUA
1968
Tratado atômico
Costa e Silva recusa-se a assinar o TNP. O tratado dividiu o mundo em dois: as potências nucleares, que não se comprometiam a se desarmar, e o resto, que só teria acesso a tecnologias pacíficas se renunciassem a esse tipo de arma.
1970
Expansão marinha
O Brasil estendeu seu mar territorial de 12 para 200 milhas; isso agradou à opinião interna e aos países litorâneos em desenvolvimento, mas irritou potências pesqueiras como os escandinavos, Japão, Inglaterra, França e os EUA.
1975
Acordo nuclear
Depois de os EUA suspenderem o fornecimento de urânio enriquecido, o Brasil assinou com a Alemanha um acordo nuclear que transferia tecnologia, mesmo sem assinar o TNP.
1975
Antissionismo
Na ONU, o Brasil defendeu a soberania do povo palestino e a retirada de Israel dos territórios ocupados. Também votou pela condenação do sionismo como “uma forma de racismo”.
1975
Guinada africana
O Brasil reconheceu no instante a independência de ex-colônias portuguesas na África – inclusive Angola e Moçambique, governados por marxistas.
11. "A tortura foi excesso de poucos"
A VERDADE: Os abusos foram uma prática sistemática, feitos em instalações do Estado por mãos especializadas
“Se houve a tortura no regime militar, ela foi feita pelo pessoal de baixo, porque não acredito que um general fosse capaz de uma coisa tão suja”, disse João Baptista Figueiredo ao Estado de S.Paulo, em 1996. Parece estranho que um ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e ex-presidente da República se mostrasse tão desinformado sobre como a ditadura coletava inteligência sobre a esquerda. Mas foi exatamente essa omissão nos altos escalões e a autonomia da comunidade de segurança que permitiram que a tortura tenha sido uma prática sistemática na ditadura.
De 1964 a 1968, os focos de abusos eram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), sobretudo no Nordeste. Segundo um despacho do SNI, não passavam de “manifestações emocionais da linha dura”. Como nessa época ainda não havia censura prévia, os casos começaram a pipocar, e o jornal Correio da Manhã iniciou uma campanha contra a tortura nos IPMs. Preocupado em manter a aura de legalidade de seu governo, Castelo Branco mandou Ernesto Geisel investigar os casos. Nenhum torturador foi punido. Mas o número de denúncias caiu de 203, em 1964, para 50 em 1967.
Já depois do AI-5, em 1968, a tortura se tornou um instrumento de interrogatório sistemático, com recursos, pessoal, instalações e instrumentos próprios. Isso começou com a Oban, montada em São Paulo em meados de 1969, e se generalizou pelo País com a criação do sistema DOI-Codi.
Aos métodos tradicionais herdados do Estado Novo (1937-1945) e da polícia civil (que já torturava presos comuns no dia a dia), somaram-se novidades estrangeiras, como técnicas britânicas que não deixam marcas físicas. Para transmitir esse tipo de conhecimento, a comunidade de segurança chegou a promover aulas práticas – como a que o tenente Ailton Joaquim deu na Vila Militar, em 8 de outubro de 1969.
Dez presos políticos foram levados a um salão, diante de uma plateia de sargentos e oficiais. No palco, o tenente projetava slides sobre modalidades de tortura, enquanto as demonstrava nos presos nus. Segundo relato de Maurício Vieira de Paiva, um dos torturados, o tenente ordenava serenamente a passagem dos slides com os desenhos de cada tortura. “Apontava com uma vareta para os detalhes projetados e explicava a técnica e os efeitos de cada método, exemplificando com nossas reações.”
Centros de tortura também mantinham médicos para reduzir danos fisicamente perceptíveis, avaliar a resistência dos presos e garantir que pudessem continuar a ser interrogados.
Denúncias de tortura
Segundo documentos oficiais, houve 6.016 denúncias, feitas por 1.843 pessoas, entre 1964 e 1977 Clique para ampliar (Dossiê SUPER (365)/Superinteressante)
A apostila Interrogatório do Centro de Informações do Exército (CIE) reconhecia a necessidade de “métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. Se o prisioneiro fosse apresentado a um tribunal, porém, deveria ser “tratado de forma a não apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões”. Torturar era preciso; deixar marcas não era preciso.
O manual considerava a tortura “ineficiente” – afinal, induz o interrogado a inventar respostas. Mas nem o fundador do CIE concordava. “Não admito a tortura por sadismo ou vingança. Para obter informações, acho válida”, disse Adyr Fiúza ao Estadão, em 1993. “Hipócritas dizem que não, mas todo mundo usa.”
O Estado criou artimanhas para evitar investigações. Enquanto juízes e promotores preveniram denúncias, diretores de hospitais e médicos fraudaram autos de corpo de delito e autópsias.
Já os torturadores eram recompensados por seu desempenho. O maior dos reconhecimentos era a Medalha do Pacificador. Um dos laureados foi Carlos Alberto Brilhante Ustra, que assumiu o DOI-Codi paulista em 1970 e, menos de dois anos depois, recebeu sua medalha “por ter-se distinguido no cumprimento do dever por atos pessoais de abnegação, coragem e bravura, com risco de vida”.
No fim, valeu a fala de Ernesto Geisel. “Era essencial reprimir”, disse ao CPDOC da FGV. “Não posso discutir o método de repressão: se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é que a subversão acabou.”
Cartilha da dor
A repressão não apenas desenvolveu técnicas de tortura como também as ensinou em aulas nos quartéis
1. CHOQUE
Torturadores aplicavam descargas elétricas em diferentes partes do corpo. As partes preferidas eram as mais sensíveis – por exemplo, um polo na genitália e outro no ânus. Os equipamentos recebiam diferentes nomes: “maquininha”, “Maricota”, “pimentinha”, “Brigitte Bardot”, “pianola”…
2. CADEIRA DO DRAGÃO
A vítima sentava nua com pulsos e pernas presos numa cadeira revestida de zinco, que distribuía o choque pelo corpo. Para intensificar o suplício, era molhada com água e obrigada a comer sal. Adicionalmente, recebia o “capacete elétrico” (balde de metal).
3. CRUCIFICAÇÃO
Suspensão da vítima pelos pulsos ou pés, amarrados por corda a ganchos fixados no teto ou em paredes. O método auxiliava outras formas de tortura: choques, afogamento, palmatória, abuso sexual…
4. GELADEIRA
Criação britânica para torturar sem deixar marcas. O preso era isolado hermeticamente dentro de um cubo de apenas 1,5 metro de altura – o que o impedia de se estender. A temperatura oscilava entre frio e calor extremos e um alto-falante emitia ruídos altíssimos.
5. TELEFONE
Aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois ouvidos ao mesmo tempo. O método levou ao rompimento dos tímpanos em diversos presos e, em alguns casos, à surdez permanente.
6. PAU DE ARARA
Suspendiam o preso com os braços e pés amarrados a um travessão. Era um método de tortura por si só, mas também auxiliava o torturador a afogar, a aplicar a palmatória e os choques elétricos e a abusar sexualmente da vítima.
7. AFOGAMENTO
Diferentes métodos foram usados: derramar água no nariz da vítima pendurada de cabeça para baixo; vedar as narinas e introduzir uma mangueira na boca; forçar a cabeça num tanque com água; imergir o corpo preso por uma corda em rios ou lagos.
8. USO DE ANIMAIS
Expunham os presos a variados tipos de animais, como cachorros, ratos, jacarés, cobras e baratas. Eram lançados contra o torturado, colocados sobre seu corpo ou mesmo introduzidos em algum orifício.
9. PALMATÓRIA
Era uma prancha de madeira com pequenos furos. Usada de preferência na planta dos pés, na palma das mãos e na região da escápula. Rompe capilares sanguíneos e provoca inchaço, que impedem a vítima de caminhar e de segurar objetos.
10. PRODUTOS QUÍMICOS
Usavam diferentes produtos químicos no torturado. Isso incluiu administração de ácido no corpo, álcool em ferimentos, “soro da verdade” (pentotal sódico) para indução em interrogatórios e injeção de éter, para provocar dores lancinantes.
Violência sexual
Abusos sexuais contra mulheres e homens foram disseminados. Nos relatos há casos de penetração vaginal, anal e oral, introdução de objetos ou animais no ânus e na vagina, choque elétrico nos genitais, atos físicos humilhantes e abortos forçados.
12. "Na época, não tinha corrupção"
A VERDADE: Os militares prometeram limpar o País. O que conseguiram fazer foi censurar notícias sobre a roubalheira
Os únicos patrimônios de Castelo Branco eram um Aero Willis preto e um imóvel em Ipanema. Médici desviou o traçado de uma estrada para que ela não valorizasse suas terras. Quando Geisel assumiu a presidência da Petrobras, sua mulher quis um apartamento novo. O general disse não. “Se comprar esse apartamento, vão logo dizer que estou roubando.”
As figuras de primeiro escalão buscaram manter uma aura de probidade. Mas uma coisa eram as contas do presidente; outra era o Estado. “Demonstrações de decência pessoal apresentaram parcos resultados para a vida pública do País”, afirma a historiadora Heloísa Starling em Corrupção: ensaios e críticas.
O combate à corrupção foi uma das bandeiras do golpe de 1964. Assim que assumiu a presidência, Castelo prometeu uma grande devassa. Não conseguiu. “O problema mais grave do Brasil não é a subversão; é a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”, disse meses depois de criar a Comissão Geral de Investigações (CGI), que investigava acusados de subversão e de corrupção. Opositores perderam direitos políticos; corruptos se adaptaram.
Em 1968, o AI-5 deu à CGI os dentes que faltavam. Agora, o presidente podia confiscar bens de quem enriquecesse ilicitamente. O resultado foi pífio. De 1968 a 1973, a CGI produziu 1.153 processos. Desses, mais de mil foram arquivados. Das 58 propostas de confisco, 41 foram alvo de decreto presidencial.
O problema não era apenas a falta de eficiência da CGI, mas também sua seletividade. Aos amigos, o silêncio. Foram arquivadas sem investigação denúncias contra os então governadores José Sarney (MA) e Antônio Carlos Magalhães (BA). Já aos inimigos, a lei. No processo contra Brizola, a CGI escrutinou suas declarações de bens desde 1959, quebrou seu sigilo bancário, verificou seus imóveis – e não encontrou nada de errado. Ou seja, quanto menos democrático um regime, mais o combate à corrupção se confunde com perseguição.
Porão bichado
Agentes da repressão corromperam juízes e médicos, formaram grupos de extermínio e entraram para a elite do jogo do bicho
A tortura não atingiu apenas presos políticos. Ela também corrompeu uma rede de colaboradores da repressão. Juízes aceitaram processos absurdos, confissões desmentidas e perícias mentirosas. Médicos dispuseram-se a fraudar autópsias e autos de corpo de delito e fizeram vista grossa às marcas de tortura em pacientes. Empresários financiaram a Oban.
E no centro de todos havia o torturador. “Quando tortura e corrupção se juntaram, o regime militar elevou o torturador à condição de intocável”, afirma Heloísa Starling. O delegado paulista Sérgio Fleury não se limitava a torturar e matar no DOI-Codi. Liderava impunemente um esquadrão da morte, comandava uma máfia de proteção para empresários e criminosos e ainda roubava dos esquerdistas que prendia. Conforme disse Golbery, “Esse é um bandido. Mas prestou serviços e sabe muita coisa.” Foi condecorado com a Medalha do Pacificador e se livrou de investigações.
O DOI-Codi do Rio também produziu seus intocáveis, e nenhum deles foi tão notório quanto o capitão Ailton Guimarães Jorge. No auge da repressão, foi reconhecido por caçar guerrilheiros. Em 1969, matou um da VPR – e, com isso, ganhou a Medalha do Pacificador. Mas não demorou para diversificar sua atuação.
No fim do governo Médici, não havia mais esquerda armada. Então, os antigos agentes da repressão precisavam de uma razão de ser. Uns criaram novos inimigos imaginários. Outros foram para a segurança particular. Já o capitão Guimarães partiu com colegas para o contrabando de mercadorias. No fim de 1973, autoridades cariocas descobriram o esquema. Foram acusados 14 militares, 8 policiais civis e alguns comerciantes. Os réus chegaram a ser presos, mas o processo foi anulado. O motivo: os acusados alegaram ter sido torturados.
Então o capitão Guimarães entrou para o jogo do bicho. Em 1981, quando se desligou do Exército, já dominava Niterói e São Gonçalo. Usando seus conhecimentos de repressão, espionagem e organização militar, transformou o bicho numa verdadeira organização. Deixou os pequenos e médios bicheiros se canibalizarem e dividiu o butim com os grandes, com os quais delimitou territórios e verticalizou o poder. No topo, ele mesmo. E, para ostentar seu domínio, seguiu o hábito dos bicheiros: adotou uma escola de samba – a Unidos de Vila Isabel.
Cimento e chumbo
Militares barraram construtoras estrangeiras das obras do “milagre econômico”. Com isso, celebraram o casamento entre o estado e as grandes empreiteiras
Denúncias contra empreiteiras pipocaram nos anos 1950, principalmente com os planos de JK de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5. Depois, voltaram com a redemocratização. Já na ditadura, o silêncio. Sinal de limpeza? Não para o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, autor de Estranhas Catedrais. “Isso evidencia obviamente não o menor número de casos, mas o amordaçamento dos mecanismos de fiscalização e divulgação.”
Em 1969, o presidente Costa e Silva barrou empresas estrangeiras de participar das obras públicas no País. Com essa reserva de mercado e as obras faraônicas da ditadura – como Transamazônica, Itaipu, Tucuruí, Angra, Ferrovia do Aço e Ponte Rio-Niterói -, as construtoras se tornaram grandes grupos monopolistas ligados intimamente com o Estado e com poucos mecanismos de controle.
Até a década de 1960, as obras da Odebrecht mal ultrapassavam os limites da Bahia. Com o protecionismo de Costa e Silva, começou a dar saltos. Primeiro, construiu o prédio-sede da Petrobras, no Rio. Os contatos governamentais na estatal abriram portas para novos projetos, como o aeroporto do Galeão e a usina nuclear de Angra. Assim, de 19ª empreiteira de maior faturamento, em 1971, pulou para a 3ª em 1973, e nunca mais deixou o top 10. Outra beneficiada foi a Andrade Gutierrez, que saltou do 11º para o 4º lugar de 1971 para 1972.
Empreiteiras menos amigas da ditadura tinham futuro menos brilhante – como a mineira Rabello. Desde a década de 1940, seu proprietário Marco Paulo Rabello foi próximo a JK. Na prefeitura de Belo Horizonte, passou-lhe o Complexo da Pampulha. No governo de Minas, foram rodovias estaduais. Finalmente, como presidente, JK deu-lhe o filé mignon de Brasília: o Eixo Monumental, incluindo a Catedral, o Alvorada e o Planalto. Mas JK era um dos grandes desafetos dos conspiradores de 1964. Com o golpe, a Rabello ficou de escanteio. Foi perdendo licitações até ir à falência nos anos 1970.
Foi assim que, ao fim da ditadura, dez irmãs detinham 68,7% do faturamento das cem maiores empreiteiras – para Campos, não necessariamente por sua excelência técnica e administrativa, mas por suas conexões políticas.
As irregularidades no setor de construção pesada não são um desvio. Trata-se de uma característica estrutural desse ramo de atividades. os desvios são os casos denunciados.
Pedro Campos, historiador
Como viviam nossos super-funcionários
Bastou a ditadura começar a suspender a censura prévia para que o jornalismo denunciasse a vida nababesca do alto escalão burocrático
A censura prévia começou a ser levantada em 1976. E, conforme as colunas políticas ressuscitavam, os jornais se infestavam com denúncias de uso de dinheiro público para benefício particular. O jornalista Ricardo Kotscho reuniu os relatos de vários correspondentes do Estado de S.Paulo e publicou, em agosto daquele ano, a série de matérias Assim vivem os nossos superfuncionários. Estava provado: a lisura do governo militar não passava de uma ilusão sustentada pela censura.
Supersalário
Os servidores brasileiros de elite ganhavam 5% mais do que os americanos. O presidente do Banco do Brasil recebia Cr$ 1 milhão por ano, o que hoje equivaleria a cerca de US$ 4,2 milhões anuais – mais benefícios. Estatais distribuíam participação nos “lucros” mesmo quando tinham prejuízos. Diretores da Eletrobrás receberiam até 17º salário.
Mercadão
Compras de mercado ficavam por conta do governo. Isso levou a abusos como o do governador Elmo Serejo Farias (DF). Num só dia, comprou 17 kg de melão, 23 kg de uva, 14 kg de ameixa, 11,3 kg de mamão, 21 caixas de pêssego e 16 dúzias de bananas. Outro dia, foram 6.825 pães franceses, 280 litros de leite e 7 pacotes de pão de forma.
Jatinhos
Órgãos públicos mantinham jatinhos, que eram frequentemente usados de forma abusiva. Ministros usavam jatos da FAB de forma tão indiscriminada que o Planalto precisou explicar numa circular: seu uso era de caráter excepcional.
Cine proibidão
Funcionários promoviam sessões privadas de cinema disputadíssimas, que traziam ao País filmes proibidos pela censura, como O Último Tango em Paris, Decameron e Laranja Mecânica.
Criadagem
Ter empregados pagos pelo governo era de praxe na elite funcionalista. Mas nada se comparava à casa do ministro do Trabalho Arnaldo da Costa Prieto, que ostentava 28 funcionários fixos.
Impunidade
Não havia legislação específica que permitisse ao Congresso e aos Tribunais de Contas fiscalizar os gastos dos superfuncionários. Abusos podiam ser encobertos sob o manto da “segurança nacional”.
Clube de vantagens
Os altos funcionários não precisavam pagar aluguel da mansão no Lago Sul, contas de água, luz e telefone, conservação de piscina, criadagem, IPTU, vigilância nem despesas com o cartão corporativo.
13. "O milagre foi uma mentira"
A VERDADE: No auge da ditadura, o Brasil de fato cresceu em ritmo chinês com inflação em queda. O problema foi o desequilíbrio econômico que veio logo em seguida
“Era um negócio maluco a oferta de emprego. Tinha Kombi que circulava entre a Volkswagen, a Mercedes, a Ford. E o peão ficava sabendo: ‘Olha, a Ford tá pagando tanto’. O cara ia na empresa, pedia a conta e ia para a Ford”, disse o ex-presidente Lula ao historiador Ronald Costa Couto. “Se houvesse eleições livres e diretas, Médici ganhava de lavada. Teria uns 70% dos votos.”
Era difícil discordar à época. Durante o “milagre econômico” (1968-1973), o Brasil cresceu 11% ao ano e virou a décima economia do mundo. Os salários eram comprimidos, mas a renda familiar crescia conforme fábricas e serviços contratavam jovens e mulheres. E, com crédito abundante e fácil, a classe média foi às compras. O número de aparelhos de televisão subiu de 1,66 milhão, em 1964, para 8,7 milhões em 1974, e o gasto com viagem ao exterior decuplicou.
Quando uma economia cresce rapidamente puxada pela demanda, costuma haver dois efeitos colaterais: inflação (a oferta não dá conta) e desequilíbrio nas contas externas (as importações crescem muito). Naqueles seis anos, aconteceu o contrário. A inflação caiu de 25,5% para 15,6%, e o superávit do balanço de pagamentos subiu de US$ 97 milhões para US$ 2,38 bilhões, em valores da época. Ou seja, um milagre.
Mas esses seis anos foram só um capítulo da ditadura. Antes, vieram três anos de aperto com Castelo. Depois, cinco anos de marcha forçada de Geisel e seis anos de catástrofe de Figueiredo. Os militares pegaram um país na bancarrota e entregaram outro país na bancarrota.
Cintos apertados
Uma das razões para civis apoiarem o golpe de 1964 foi uma crise econômica que se estendia desde os estertores do governo JK. Com o fim dos “50 anos em 5”, a economia parou. A indústria retraiu em 1963, a inflação atingiu 91,8% em 1964, e Jango não tinha força política para fazer ajustes. Então os militares entraram prometendo arrumar a economia.
Isso significava malvadezas no curto prazo. No diagnóstico dos liberais Roberto Campos (Planejamento) e Octávio Bulhões (Fazenda), a inflação era resultado de um governo que arrecadava pouco e gastava muito. Desfalcado, ele ligava as impressoras de dinheiro, mas o excesso de moeda aumentava o nível geral dos preços. Para resolver o déficit público, a equipe econômica fez uma reforma tributária – daí vieram o IPI, o ICM (hoje ICMS) e o ISS. A carga tributária subiu de 16% para 21% do PIB, entre 1963 e 1967. Também elevou os juros e passou a ajustar os salários sempre abaixo da inflação.
Quando Costa e Silva assumiu a presidência e pôs Delfim Netto na Fazenda (1967-1974), a casa já estava em ordem. A inflação tinha caído de 86%, em 1964, para 24%, em 1967 e o déficit público estava sob controle. O problema, agora, era legitimar o governo militar. A população sofria com o ajuste econômico e começava a manifestar-se contra casos de repressão. Já a linha dura pressionava Costa e Silva para fechar ainda mais a a ditadura. Era necessário um milagre para sustentar o regime. E Delfim o fez.
Milagreiro
Aproveitando a economia em boas condições, Delfim retomou os investimentos públicos em infraestrutura. Também aumentou a demanda por bens duráveis e por habitações, abrindo as porteiras do crédito ao consumidor. Entre 1968 e 1973, o crédito cresceu 17% ao ano, contra 5% no governo Castelo, e o endividamento familiar, 23,6%.
A aposta era puxar o crescimento pela demanda. Como vimos, isso pode aumentar a inflação e o desequilíbrio das contas externas. Mas não foi o que aconteceu. Para que a oferta desse conta da demanda e a inflação não crescesse, era necessário aumentar as importações. Para isso, tinha que arranjar dólares, exportando ou captando recursos no exterior. Felizmente, a economia mundial ajudou o Brasil nas duas frentes. A alta das commodities e a diversificação da economia brasileira ajudaram a quase triplicar nossas exportações. Ao mesmo tempo, os juros internacionais estavam baixíssimos, o que ajudou a pegar emprestado a rodo. De repente, o Brasil era o Japão da América Latina.
Ouro de tolo
Sob Médici (1969-1974), o Brasil viveu ao mesmo tempo seus anos de chumbo e de ouro. Mas os problemas não demorariam a aparecer. Trabalhadores de baixa qualificação permaneceram com os salários comprimidos por uma fórmula malvada que indexava os salários a uma previsão de inflação, sempre subestimada. Já os trabalhadores qualificados foram agraciados pela lei de mercado: com muitas vagas e poucos profissionais, o salário só aumentava. O bolo cresceu, mas não foi repartido.
Outro problema foi a ênfase ao consumo de bens duráveis, que dobrou no período. A classe média conseguiu comprar seus Fuscas, Corcéis e Opalas, suas geladeiras Brastemp e televisões Philco. Ótimo, pois isso impulsionou a indústria desses bens. A de transporte cresceu, em média, 24% ao ano, e a de eletrodomésticos, 22%. Mas isso aumentou a demanda por bens intermediários, como chapas de aço e derivados de petróleo, e a produção desses era pequena no País. Assim, a economia brasileira passou a depender da sua capacidade de importar esses bens.
A maior vulnerabilidade do Brasil estava no petróleo, que ocupava 40% da matriz energética. No milagre, a fatia importada subiu de 59% para 81%. Isso não foi um problema enquanto o barril oscilou entre US$ 1,80 e US$ 3,29. Até que, em outubro de 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) elevou para US$ 11,65. Com isso, o Brasil perdeu a capacidade de importar – e, consequentemente, de produzir. Assim acabou o milagre.
O choque
A conta do petróleo tinha que ir para algum lugar. Se o aumento fosse repassado internamente, ele se espalharia por toda a economia, dos fretes aos fertilizantes no campo. Isso mais do que dobraria a estimativa de inflação para o ano. Para evitar um aumento tão drástico, Delfim Netto passou a importar combustível com as reservas monetárias do País – o equivalente a queimar as roupas para se aquecer no inverno.
Era necessária uma solução de verdade. Economias mais sensatas absorveram o choque pisando no freio. Foi o que os EUA, as potências europeias e o Japão fizeram. Forçaram um ajuste recessivo, que conteve a demanda interna e limitou o efeito do choque sobre a inflação e sobre as contas externas. Mas, no Brasil, o freio significava o fim do milagre, base legitimadora da ditadura.
Geisel assumiu a presidência numa posição incômoda. A piora na economia fortalecia tanto a pressão da sociedade pela abertura política quanto a da direita militar, que queria permanecer no poder. Sanduichado entre abrir e fechar, Geisel decidiu fugir do dilema apertando o acelerador. Então, criou um pacotão de investimentos na indústria de bens de produção – o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (2º PND).
Entre 1974 e 1979, o setor metalúrgico cresceu 45%, o de material elétrico, 49%, o de celulose, 50%, o químico, 48%. E os projetos megalomaníacos se sucediam: usina de Itaipu, Projeto Carajás, prospecção na Bacia de Santos, usina de Angra, polo petroquímico de Camaçari, Pró-Álcool… Com o 2º PND, imaginava Geisel, o Brasil conquistaria a independência em energia e bens de produção.
Só que o Brasil não tinha dinheiro para tanto. A solução foram os “petrodólares”. Funcionou assim. Depois de aumentar o preço do barril, os países Opep foram inundados de dólares. Parte das receitas foi consumida; outra parte voltou para o mercado financeiro. Como os bancos de países industrializados impunham tetos aos juros, os dólares de sauditas e cia seguiram para os países emergentes – mais arriscados e, por isso, mais lucrativos. E nenhum cliente tinha uma fome de petrodólares maior que o Brasil do 2º PND. De 1974 a 1979, o País aumentou sua dívida externa de US$ 17 bilhões para US$ 50 bilhões.
A saída pela frente de Geisel era um lance arriscadíssimo. Para dar certo, o financiamento externo precisaria permanecer abundante e barato até que os investimentos maturassem. Só que o 2º PND era um plano de longo prazo. Itaipu foi inaugurada em 1984, uma década depois de iniciadas as obras. Já Angra 2 iniciou as operações comerciais em 2001. Bem antes disso, a Opep promoveu um novo choque no petróleo, em 1979, de US$ 13,60 para US$ 30.
Para conter os efeitos inflacionários, os bancos centrais dos países ricos elevaram suas taxas de juros. Ronald Reagan aumentou a prime rate de 7,9% ao ano para 16,4% em 1981, o que fez dos EUA o maior aspirador de dólares do planeta. Em 1982, o México declarou moratória. Agora, ninguém queria mais deixar o dinheiro no Terceiro Mundo. Nisso, o Brasil tinha que pagar juros cada vez maiores para rolar seus débitos. E a nossa dívida externa acelerou até chegar às alturas.
Quando a ditadura terminou, em 1985, o PIB mal conseguiu recuperar o nível de 1980. O Brasil acumulava uma dívida externa de US$ 105 bilhões, 30 vezes maior do que a de 21 anos atrás. A inflação de 239% ao ano fazia os 91,8% de Jango parecerem um problema menor. O salário mínimo havia caído pela metade, e quase 50% da população permanecia abaixo da linha de pobreza. Do milagre econômico, os militares deixaram para os civis uma maldição inflacionária que só se resolveria em 1994, com o Plano Real.
Quem quer dinheiro?
A ditadura não conseguiu acabar com a inflação. Ela deixou as sementes da Hiperinflação
A inflação do cruzeiro, moeda criada em 1942, foi pondo zeros à direita dos preços até o número mil virar a nova unidade monetária – uma geladeira Clímax, por exemplo, saía por Cr$ 650 mil em 1966. Para facilitar as contas, o Banco Central carimbou todas as cédulas. Agora, chamavam-se cruzeiros novos e tinham três zeros a menos.
A VERDADE: A intervenção do Estado na economia aumentou, com criação de empresas estatais, controle de preços públicos e privados e reserva de mercado
Uma das justificativas para que civis apoiassem o golpe de 1964 foi o excesso de intervenção do Estado na economia desde os tempos de Getúlio. Mas o único momento em que a ditadura se aproximou do liberalismo econômico foi no breve governo Castelo Branco. Bastou Delfim Netto assumir a Fazenda, em 1967, para que o livre-mercado acabasse.
Delfim concedeu isenções fiscais e juros favorecidos ao setor agrícola para estimular a oferta interna de alimentos e a exportação de commodities. Deu subsídios, crédito facilitado e minidesvalorizações cambiais para ajudar a exportação manufatureira. Permitiu que empresas estatais se endividassem além da conta no exterior. Abriu os cofres do BNDE para empresas privadas e inundou as famílias de crédito fácil.
O natural é que tanto gasto aumentasse a inflação. Para impedir isso, Delfim controlou os principais preços da economia – não só câmbio, salários, juros e tarifas, mas também o de insumos industriais. Não bastando, maquiava índices de inflação. “Todas as declarações em favor do desenvolvimento do setor privado e da livre operação do mercado contrastavam com a proliferação de incentivos, novos subsídios ou isenções específicos, que tornavam o papel do governo extremamente importante”, afirma o economista André Lara Resende, em A Ordem do Progresso.
Depois do choque do petróleo, Geisel iniciou o mais amplo programa de intervenção estatal na história do País. Do total de investimentos entre 1970 e 1973, 50% foi público. Já em 1980, a fatia atingiu 65%. O Estado virou empresário, no comando da cadeia petroquímica, de usinas siderúrgicas, da produção e distribuição de energia elétrica, das telecomunicações, de estradas e ferrovias.
A ideia de Geisel era que as estatais liderassem o crescimento da indústria de bens de produção -o que fazia sentido para livrar o Brasil da dependência externa de importações. Mas o País não tinha poupança doméstica para fazer tanto investimento. Então, Geisel botou as estatais para captar petrodólares. Para baixar a inflação galopante, também forçou as estatais a baixar seus preços. Entre janeiro de 1979 e dezembro de 1984, o preço real dos produtos de ferro e aço, dominados por estatais, caiu 50%, e a tarifa telefônica, 60%. Assim, os maiores problemas da economia se apoiaram nos ombros das estatais, que foram definhando. De empresário, o Estado virou o rei da sucata.
15. "A Igreja apoiava a ditadura"
A VERDADE: No início, a CNBB colaborou com a ditadura. Depois, militou contra a tortura e apoiou movimentos sociais
O caudal humano escorreu da Praça da República até as escadarias da catedral da Sé, onde encontrou o senador Padre Calazans (UDN) de microfone empunhado: “Hoje é dia de São José, padroeiro da família. Fidel Castro é o padroeiro de Brizola. É o padroeiro de Jango. É o padroeiro dos comunistas. Nós somos o povo!” A multidão da Marcha da Família com Deus pela Liberdade respondia ora bradando “um, dois, três, Brizola no xadrez”, ora rezando um Pai-Nosso.
Desde sua fundação, em 1952, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) foi liderada por bispos progressistas, com d. Helder Câmara na secretaria geral. Mas a radicalização da esquerda no governo Goulart assustou a ala moderada, e, igual ao que aconteceu no Congresso, o centrão da CNBB migrou para o lado conservador.
Depois do golpe, a hierarquia católica permaneceu dividida e só quebrou o silêncio mais de um mês depois, com um manifesto. Nele, dava “graças a Deus” aos militares – “que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação”.
Mas o texto foi escrito a duas mãos – e a segunda era a de d. Helder, o “bispo vermelho”. “Não nos curvamos às pressões de grupos que pretendam silenciar nossa voz em favor do pobre e das vítimas da perseguição e da injustiça na urgência da restauração da ordem social”. Apesar do predomínio conservador, a queda de braço com os progressistas continuava.
No segundo semestre de 1964, bispos de todo o mundo se reuniam em Roma para discutir o papel da Igreja no mundo. Era a terceira sessão do Concílio Vaticano 2º (1962-1965), a maior reforma da Igreja desde o século 16. Com ele, a Igreja Católica se abria ao mundo. Mas a delegação brasileira estava preocupada com algo mais prosaico: derrubar os progressistas nas eleições da cúpula da CNBB.
D. Helder perdeu a secretaria geral para o obscuro d. José Gonçalves. Já a presidência foi para d. Agnelo Rossi (1964-1971), futuro arcebispo de São Paulo, mais conhecido pela capacidade de nada ver e nada ouvir. A CNBB se fechava para os abusos da ditadura.
Mas a Igreja não tem a hierarquia dos militares. Apesar da cúpula conservadora, os progressistas eram livres para agir em suas dioceses e paróquias. Religiosos protegiam grupos de esquerda, inclusive armados. Em julho de 1967, a polícia deteve 11 padres do mosteiro de Vinhedo, SP, por abrigarem um congresso clandestino da UNE. Em novembro, o bispo de Volta Redonda, RJ, teve a casa invadida, por abrigar militantes da Juventude Operária Católica.
Embora conservadora, a CNBB ficou do lado dos religiosos nos dois casos. Afinal, a ditadura considerava um padre esquerdista apenas um esquerdista. Já para a Igreja, era apenas um padre, e a CNBB não aceitaria militar algum interferindo em seu clero.
Vergonha
Em 1968, as ruas foram tomadas por manifestações. Mesmo a classe média que apoiara o golpe começava a protestar. Na CNBB, os progressistas também davam sinal de recuperação. Em julho, ela encerrou sua Assembleia apelando a reformas, à não violência e a um retorno às liberdades individuais. Por fim, o progressista d. Aloísio Lorscheider foi eleito secretário-geral.
Embora o presidente d. Agnelo permanecesse omisso na CNBB, os progressistas ganhavam margem de manobra exatamente quando a ditadura montava seu aparato de tortura.
Em 1969, d. Aloísio incumbiu o professor Cândido Mendes de elaborar um documento a partir de relatos de tortura. Com um grupo de advogados, Mendes coletou os relatos e informou o Vaticano. No exílio, a esquerda se uniu a religiosos católicos e protestantes para denunciar a tortura a governos e imprensa estrangeiros.
No dia 26 de janeiro de 1970, d. Helder foi pessoalmente encontrar o papa Paulo 6º, que disse que a Igreja não deveria mais tolerar tais atrocidades num país católico. Quatro meses depois, d. Helder discursava para 10 mil pessoas no Palácio dos Esportes, em Paris.
Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra.
D. Helder Câmara, em discurso em Paris, em 1970
“Meu governo propaga que quem fala de torturas é inimigo de sua pátria.” D. Helder tocava na ferida externa da ditadura – a legitimidade diante das outras nações. “Os culpados de traição ao povo não são os que falam, mas os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria, e a tortura a desonra.”
D. Agnelo não arredava o pé. “Detesto a demagogia”, disse na missa de Páscoa, na catedral da Sé. “É indigno e impatriótico denunciar alguma coisa de seu País no exterior. Havendo roupa suja, lava-se em casa.”
Mas d. Agnelo preferia ficar de roupa suja. Em 1969, quando sete frades dominicanos foram presos na sede da Oban, o arcebispo foi visitá-los – e negou que tivessem sido torturados. Com um presidente desses, a CNBB só mudaria se pegassem um figurão do clero.
D. Helder Câmara, em discurso em Paris, em 1970
“Meu governo propaga que quem fala de torturas é inimigo de sua pátria.” D. Helder tocava na ferida externa da ditadura – a legitimidade diante das outras nações. “Os culpados de traição ao povo não são os que falam, mas os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria, e a tortura a desonra.”
D. Agnelo não arredava o pé. “Detesto a demagogia”, disse na missa de Páscoa, na catedral da Sé. “É indigno e impatriótico denunciar alguma coisa de seu País no exterior. Havendo roupa suja, lava-se em casa.”
Mas d. Agnelo preferia ficar de roupa suja. Em 1969, quando sete frades dominicanos foram presos na sede da Oban, o arcebispo foi visitá-los – e negou que tivessem sido torturados. Com um presidente desses, a CNBB só mudaria se pegassem um figurão do clero.
Respeita o moço
No dia 7 de outubro de 1970, uma tropa do DOI-Codi no Rio invadiu um instituto dirigido por jesuítas. Prenderam alunos, professores, o provincial da Companhia de Jesus, o reitor da PUC – e o secretário-geral da CNBB, d. Aloísio. Ficou detido por quatro horas e foi fotografado de frente e de perfil. A ditadura atingia a cúpula da Igreja.
Numa rara demonstração de unidade, os cinco cardeais brasileiros protestaram numa carta ao presidente Médici, lamentando a “deterioração” de suas relações. Passados 12 dias, d. Aloísio se reuniu com o papa, em Roma, e a imprensa do Vaticano publicou uma advertência da CNBB – “o terrorismo da subversão não pode ter como resposta o terrorismo da repressão”.
Mais três dias, e o papa tirou d. Agnelo da arquidiocese de São Paulo e o substituiu por d. Paulo Evaristo Arns. No fim do ano, a CNBB elegeu d. Aloísio presidente da CNBB e seu primo d. José Ivo Lorscheider secretário-geral. Os progressistas reconquistavam a CNBB. Era o auge da ditadura, e a alta hierarquia católica estava na oposição.
A Igreja tinha penetração por todo o território nacional e por todas as classes sociais. Isso fazia dela uma ameaça maior que os pequenos grupos armados. E seu prestígio junto à sociedade deu-lhe uma imunidade da qual não gozaram os partidos políticos ou a imprensa.
D. Paulo organizou as denúncias de tortura, criou a Comissão de Justiça e Paz, o grupo Clamor e o projeto Brasil: Nunca Mais, que coletou processos judiciais movidos contra presos políticos. A pesquisa permitiu compreender a extensão e o funcionamento da repressão política e evitou a destruição de provas de crimes do Estado.
As Comunidades Eclesiais de Base e pastorais como a da Terra, a Operária e a da Juventude deram a proteção institucional para movimentos sociais.
Já d. Helder foi indicado ao prêmio Nobel da Paz em 1970, 1971, 1972 e 1973 por sua campanha internacional contra a tortura. A ditadura boicotou sua candidatura, mas, na falta do prêmio, o Vaticano abriu em 2015 seu processo de beatificação e canonização.
A Igreja não foi um sustentáculo da ditadura. Foi um campo de batalha que oscilou entre o combate ao comunismo e o combate à tortura. A mesma Igreja que apoiou o golpe e que silenciou diante do AI-5 foi a que denunciou a tortura e gestou os movimentos sociais que definiriam a cena política da redemocratização – incluindo aí uma participação importante na criação do futuro Partido dos Trabalhadores.
Crimes que jogaram os bispos contra os generais
SETEMBRO, 1968
Três padres franceses e um diácono brasileiro são presos e torturados em Belo Horizonte. A CNBB reage dizendo que nenhuma autoridade pode julgar a pregação do seu clero.
MAIO, 1969
O padre Antônio Henrique Pereira Neto, 28, é encontrado no Recife morto, com corda no pescoço, feridas pelo corpo, tiro na cabeça e cortes de facão na garganta e na barriga. Era o padre auxiliar de d. Helder Câmara, arcebispo de Olinda.
OUTUBRO, 1969
A madre Maurina Borges da Silveira, diretora do Lar Santa de Ribeirão Preto, SP, é submetida a choques elétricos e obrigada a assinar uma confissão dizendo ser amante de um guerrilheiro.
NOVEMBRO, 1969
Os freis dominicanos Fernando de Brito e Ivo Lesbaupin são presos e torturados. No interrogatório, é descoberto o paradeiro de Marighella, morto em seguida.
AGOSTO, 1974
O frade dominicano Tito de Alencar Lima, torturado na sede da Oban, em 1969, suicida-se no exílio, na França.
OUTUBRO, 1975
O DOI paulista simula o suicídio do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto em suas dependências. O arcebispo d. Paulo, o rabino Henry Sobel e o reverendo Jaime Wright celebram na Sé um ato em sua memória.
OUTUBRO, 1976
Um policial mata a tiro o padre jesuíta João Bosco Burnier, no Mato Grosso. Motivo do assassinato: o padre tinha ido à delegacia denunciar a tortura contra camponesas.
16. "As cidades não eram violentas"
A VERDADE: Durante a ditadura, a violência urbana cresceu sem parar, e a taxa de homicídio atingiu o nível de epidemia
“Há um novo crime na praça: mais ambicioso e mais duro. E um novo criminoso, que trocou a cachaça pela maconha, a faca pelo revólver”, dizia a matéria de capa da Veja de 23 de abril de 1969. As principais capitais sentiam crescer a violência urbana – em São Paulo, assaltos a banco saltaram de um em 1965 para 37 em 1968; em um ano, roubos pularam de 150 para 400, e homicídios dolosos, de 280 para 350. “E os menores? Com 14 anos, ou até menos, já há bandidos perigosos, hábeis motoristas, quase sempre bem armados; matam, roubam e, quando detidos, caem nos institutos de menores, de onde quase sempre conseguem fugir”.
De 1920 a 1960 a taxa de homicídios esteve sob controle, numa média de 5 mortos a cada 100 mil habitantes – isso apesar de o número de paulistanos ter pulado de 580 mil para 3,8 milhões. Até que a taxa começou a acelerar na década de 1960 [veja gráfico]. Em 1968, já eram 10,4 mortos por 100 mil – nível que a OMS considera epidêmico. Desde então, continuou subindo até atingir seu cume em 1999, com 64,3 homicídios a cada 100 mil. Não por coincidência, a escalada se acelerou no final da ditadura, quando policiais formaram grupos de extermínio, aplaudidos pela população como heróis por matarem bandidos.
Transformação
Até os anos 1960, a maior parte dos homicídios paulistanos acontecia dentro de casa. Era sinal de que a maiora não passava de crimes passionais ou de desentendimentos entre parentes ou conhecidos. Crimes mais bizarros se concentravam na Boca do Lixo, atual Cracolândia, ou nas mãos de vilões míticos, como o Bandido da Luz Vermelha. Em todo caso, o homicida era considerado um pária social, responsável por ações incompreensíveis e condenáveis.
Mas o homicídio ganhou um novo significado na São Paulo do fim dos anos 1960. “A figura do bandido, em oposição à do trabalhador, tornou-se ameaçadora a ponto de seu extermínio ser desejado ou tolerado”, afirma Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O homicídio tornou-se um método de limpeza e controle social, e o homicida, um herói em defesa da comunidade.
No final da década de 1960, o então delegado da Polícia Civil Sérgio Fleury formou o primeiro grupo paulista explicitamente destinado ao extermínio de bandidos comuns – o Esquadrão da Morte. Entre 1969 e 1971, matou mais de 200 suspeitos, e convenceu muitos de que “bandido bom é bandido morto”.
O grupo agia de madrugada. Tirava presos comuns das celas e executava-os numa estrada vazia. Para divulgar a obra, acomodava o desenho de uma caveira ao lado do corpo e chamava a imprensa. Numa pesquisa da Veja em 1970, 60% dos paulistas se disseram favoráveis ao esquadrão.
Os grupos de extermínio não agiram sozinhos. Em 1975, com a guerrilha de esquerda já desmontada, a PM passou a atuar no patrulhamento ostensivo das periferias paulistanas. Sua ferramenta de controle territorial era a morte. Nos anos 1980, surgiram também os justiceiros privados, que, com o respaldo de comerciantes locais e da polícia, começaram a matar em bairros periféricos.
Avalanche
O extermínio teve um efeito colateral imprevisto – aumentou a criminalidade nas periferias. Isso por dois motivos. Primeiro, o homicídio inicia uma cadeia de vinganças. Numa pesquisa de 2012, Manso descobriu que uma rixa iniciada em 1993 no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, levou a 156 mortos em cinco anos.
Outro fator é que a imagem de corpos largados nas ruas, enterros de amigos e de parentes e conversas sobre tiroteios tornam o homicídio um meio possível para resolver disputas ou reagir a ameaças. “Conflitos banais, como o galanteio à namorada de terceiros, brigas em bar ou olhares enviesados podem ser suficientes para despertar o medo da morte”, afirma Manso. E quem teme morrer se previne matando antes.
O auge da violência urbana só viria 14 anos depois do fim da ditadura. Mas isso não fez da ditadura uma época de paz nas ruas. Foi um período de violência urbana crescente. Acima de tudo, foi a incubação de uma geração de jovens prontos para matar uns aos outros.
A Escalada
Evolução da taxa de homicídios em São Paulo (mortos por 100 mil habitantes) Clique para ampliar (Dossiê SUPER (365)/Superinteressante)
17. "A luta armada era democrática"
A VERDADE: Guerrilheiros combatiam a ditadura. Mas queriam a ditadura do proletariado no seu lugar
A derrota do 1º de abril de 1964 desmoralizou as principais correntes de esquerda do Brasil. O PTB foi arrancado do governo a fórceps, a direita subiu ao poder, e o PCB, partido mais influente entre intelectuais e movimentos sociais, mergulhava numa crise existencial.
Ainda em 1958, o Partidão tinha renunciado à luta armada. Em vez da revolução, passou a defender uma via pacífica, reformista. Faria uma aliança com a chamada “burguesia nacional”, representada pelo PTB e por parte do PSD, e concentraria suas forças para combater dois inimigos maiores – o “imperialismo” e o “feudalismo”. Foi assim que o PCB colocou sindicatos e movimentos sociais do lado de Jango e, ao mesmo tempo, passou a pressionar nas ruas por controle do capital estrangeiro e reforma agrária.
Mas a estratégia pacifista deu no que deu. De um lado, os velhos dirigentes do PCB ficaram esperando acontecer, sem armas nem votos. Do outro, a geração do “vamos embora, que esperar não é saber” inspirava-se nas vitórias armadas de Che, Fidel, Ho Chi Minh e Ben Bella. Então, os mais inconformistas abandonaram o Partidão e se uniram a estudantes idealistas e a militares brizolistas para formarem grupos de luta armada. Para a esquerda radical, não havia por que falar em paz, quando a direita tomava o poder com tanques.
Desse ponto de vista, as guerrilhas de esquerda foram, de fato, uma resistência contra a ditadura. Mas seu objetivo não era dar um passo para trás e restaurar o regime democrático liberal. Era levar a cabo uma revolução e instalar a ditadura do proletariado – tal como fizeram seus ídolos, os ditadores Fidel e Mao.
“Eles não queriam apenas derrotar a ditadura. Pretendiam destruir o capitalismo como sistema”, afirma o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis. “O capitalismo não mais existiria sem a ditadura. E a ditadura era a garantia do capitalismo. A destruição de uma significaria a morte do outro.”
Os grupos guerrilheiros foram muitos. Em geral, seu plano era montar guerrilhas rurais financiadas nas cidades por “expropriações” – ou simplesmente assaltos. Uns tinham projeto mais nacionalista; outros, mais socialista. Uns eram vanguardistas que esperavam ser seguidos pelas massas; outros defendiam a participação popular. Sua organização também variava da rigidez do partido à flexibilidade da guerrilha de inspiração cubana.
Apesar das diferenças, todos tinham duas metas em comum, como escreveu Carlos Marighella em setembro de 1969. “A primeira é que a atual estrutura de classes seja transformada e que o aparelho burocrático-militar do Estado seja destruído, para, no seu lugar, ser colocado o povo armado”, disse o guerrilheiro mais procurado pela ditadura. “A segunda é expulsar do País os norte-americanos”.
Metamorfose
Ainda assim, prevalece hoje o mito de que a luta armada buscava a democracia. Essa grande mudança de discurso ocorreu já na segunda metade dos anos 1970, durante a campanha pela anistia. “Os projetos revolucionários derrotados transformaram-se na ala extrema da resistência democrática. [É como se] ninguém quisera participar de uma revolução social, apenas aperfeiçoar a democracia, e muitos não se privariam de dizer inclusive que lutavam apenas por um país melhor”, afirma Reis. “Fez-se o silêncio sobre a saga revolucionária. Ela saiu dos radares da sociedade. Desapareceu soterrada na memória coletiva.”
Houve resistências à metamorfose. Em julho de 1975, o militante Raul Villa, codinome do sociólogo Éder Sader, publicou na revista Brasil Socialista um texto propondo que a esquerda lutasse por liberdades democráticas. Sader foi desautorizado pela Polop, organização que ajudara a fundar. Na edição seguinte, Daniel Terra, líder do MR-8, escreveu outro texto insistindo na democratização.
Foi assim que as antigas organizações de luta armada, já derrotadas e exiladas, começaram a ceder ao campo democrático. Com a Lei da Anistia, de 1979, e a saída de ex-guerrilheiros do exílio ou da clandestinidade, muitos adaptaram o passado conforme seus interesses políticos presentes. “Fazem de conta que tiveram no passado as mesmas posições hoje defendidas”, diz o sociólogo Marcelo Ridenti. Agora, a redemocratização era abraçada por ex-guerrilheiros – como fizeram Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Carlos Minc, Aloísio Nunes, José Genoíno, José Dirceu e Dilma Rousseff.
Como a esquerda pegou em armas
A luta armada reuniu militares brizolistas, jovens universitários e antigos comunistas insatisfeitos com o pacifismo do PCB.
Desde a Campanha da Legalidade, de 1961, Brizola manteve sob sua liderança um contingente de marinheiros e sargentos rebeldes, depois expurgados na faxina de Castelo Branco. Exilado no Uruguai, Brizola formou com esses homens a primeira guerrilha da ditadura – o Movimento Nacionalista Revolucionário, que recebeu apoio de Cuba. O MNR chegou a planejar três insurreições: no Mato Grosso, com ajuda do Partido Comunista Boliviano, no atual Tocantins e na Serra de Caparaó, divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. O Exército desmontou todas, com facilidade, e Brizola deixou as armas de lado. Mas os antigos sargentos rebeldes continuaram dispostos a guerrilhar.
Paralelamente, jovens de classe média influenciados pelas vitórias de Che e Mao e pelos ventos revolucionários de maio de 1968 formavam uma nova geração de esquerda universitária radical. Eles tinham o idealismo e o romantismo para lutar. Faltava apenas a experiência necessária para manter uma organização clandestina.
É aí que entraram em cena os dissidentes do PCB, como Carlos Marighella. Os velhos dirigentes comunistas carregavam a experiência de ter sobrevivido à ditadura do Estado Novo e a décadas de clandestinidade. Foi nessa associação entre ex-militares, estudantes radicais e dissidentes comunistas que se formaram as várias guerrilhas de esquerda.
A ascensão e a queda da guerrilha
O golpe de 1964 despertou uma geração de jovens para a política. com o fechamento do regime, em 1968, eles buscaram a luta armada, inspirados em Cuba e na China
Número de militantes armados: 1.416, divididos em cerca de 20 grupos
Maior grupo: ALN (300 membros)
Assaltos a bancos e carros-fortes: 1968: 17 / 1969: 83 / 1970: 47 / 1971: 7
Valor roubado: US$ 3,8 milhões
Atentados a bomba: 40
Sequestros a aviões: 8
Sequestros de diplomatas: embaixadores dos EUA, da Alemanha Ocidental e da Suíça e cônsul do Japão
ASCENSÃO
1965 – 1967
Ensaio de luta armada: Brizola exila-se no Uruguai, onde cria o MNR, com militares expurgados por Castelo Branco. Aproxima-se de Fidel e envia militantes para Cuba. Depois de três guerrilhas fracassadas entre 1965 e 1967, o MNR se dispersa e seus militantes vão para outras organizações.
25.jul.1966
O primeiro atentado: Uma bomba-relógio explode no aeroporto de Guararapes, no Recife. O alvo é o general Costa e Silva, então presidenciável, mas seu avião pousa em João Pessoa. Morrem um almirante da reserva e um jornalista.
Nov.1967
Marighella: A ALN começa a agir escondida. Realiza assaltos que se confundem com crimes comuns e atentados sem assumir a autoria. Mas o grupo é identificado em 1968, e a foto de seu líder, Carlos Marighella, é publicada na capa da revista Veja. Começa a caça aos guerrilheiros.
25.jun.1968
Caminhão-bomba: De madrugada, a VPR lança um caminhão com 15 kg de dinamite contra o Quartel General do 2º Exército, SP. A explosão mata o soldado Mário Kozel Filho e fere seis. A VPR era liderada por Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército.
1.jul.1968
Justiçamento 1: Três membros do grupo Colina tentam “justiçar” o capitão boliviano Gary Prado, que havia sido acusado de matar Che Guevara. Por engano, acabam matando o major alemão Edward von Westernhagen.
12.out.1968
Justiçamento 2: A VPR mata o capitão americano Charles Rodney Chandler na saída de casa, em São Paulo. O veterano do Vietnã estudava no País. Segundo os guerrilheiros, era agente da CIA.
18.jul.1969
O cofre do Ademar: 13 militantes da VPR vestidos de agentes da PF roubam um cofre com US$ 2,6 milhões – equivalentes hoje a US$ 17 milhões. O dinheiro estava na casa do irmão da amante de Ademar de Barros, ex-governador paulista conhecido pelo slogan “rouba, mas faz”.
4.set.1969
O diplomata 1: Membros do MR-8 e da ALN sequestram o embaixador americano Charles Burke Elbrick. Em troca, exigem a libertação de 15 presos políticos, enviados ao México, e a publicação de um manifesto nos meios de comunicação.
QUEDA
Repressão
O sequestro de Elbrick leva a ditadura a uma corrida repressiva. Recorrendo à tortura, desmonta a estrutura da luta armada. No curto período de setembro de 1969 a janeiro de 1970, ela descobre 66 esconderijos, prende 320 pessoas, apreende 300 armas e mata o mítico Marighella.
No fim de 1970 há pelo menos 400 militantes presos – mais do que os 200 exilados e os meros 100 na clandestinidade.
11.mar.1970
O diplomata 2: A VPR sequestra o cônsul japonês Nobuo Okuchi em troca de cinco presos políticos, enviados ao México.
11.jun.1970
O diplomata 3: A ALN e a VPR sequestram o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben em troca de 40 presos políticos, enviados à Argélia.
7.dez.1970
O diplomata 4: A VPR sequestra o embaixador Giovanni Bucher em troca de 70 presos políticos, enviados ao Chile.
15.abr.1971
Justiçamento 3: O MRT mata, em conjunto com a ALN, o executivo Henning Boilesen, presidente da Ultragaz, por ter ajudado a financiar a Operação Bandeirante.
Jan.1973
Fim 1: ALN, VAR, VRP e APML reconhecem o fracasso da luta armada urbana, em artigo do jornal Le Monde.
Out.1974
Fim 2: Em 1967, o PCdoB começa a instalar ao longo do rio Araguaia a única guerrilha rural do Brasil. A estratégia era fazer um lento trabalho de conscientização e mobilização junto aos agricultores locais. Foi exterminada por três operações do Exército, entre 1972 e 1974 .
18. "Subversivos ameaçavam a ditadura"
A VERDADE: Apesar de algumas ações de impacto, os grupos armados eram pequenos, desunidos e vulneráveis
Entre 1968 e 1971, grupos de esquerda assaltaram 154 bancos e carros-fortes, o que rendeu à “causa” estimados US$ 3,8 milhões – equivalentes a US$ 23 milhões atuais. Isso fazia da guerrilha brasileira a mais rica do mundo. Além disso, fizeram 40 atentados a bomba, sequestraram oito aviões comerciais e quatro diplomatas estrangeiros. No campo, o Exército precisou mobilizar o maior número de soldados em território nacional desde a Guerra de Canudos, para combater a Guerrilha do Araguaia. Uma única operação teve 3.200 homens.
De fato, a luta armada foi uma resistência à ditadura. Mas seria um exagero dizer que essas dezenas de pequenos grupos desunidos representava uma ameaça ao regime. Contra os revolucionários havia pelo menos quatro fatores: a capacidade desproporcionalmente maior da repressão, a falta de unidade da esquerda, um modelo de revolução inadequado ao Brasil e a popularidade da ditadura. “Independentemente das intenções revolucionárias, os grupos armados não tinham a menor condição social, política, econômica ou militar de enfrentar o poder da ditadura”, afirma o sociólogo Marcelo Ridenti, da Unicamp.
Os 1.416 guerrilheiros eram suficientes para lotar um auditório grande, mas não para liderar uma revolução num país de dimensões continentais. Ainda assim, ganharam visibilidade com ações simbólicas, mas isso reforçou o argumento militar de que “inimigos internos” ameaçavam a segurança nacional e, por isso, deveriam ser eliminados por meios não convencionais.
Otimismo
No início da luta armada, a esquerda colheu alguns sucessos. Mas eles refletiam menos a capacidade dos guerrilheiros e mais aquela janela de oportunidade aberta antes de a ditadura consolidar seu aparato repressor. Era mais fácil fazer guerrilha em 1968 e no início de 1969, quando o regime não tinha informações sobre os grupos armados e seus métodos, quando as “expropriações” se confundiam com crimes comuns, quando os alvos de atentados estavam despreparados e quando as vitórias alimentavam o espírito revolucionário.
Já em setembro de 1971, havia mais militantes presos e exilados do que em ação. Os que permaneciam soltos estavam mais ocupados em sobreviver do que com a revolução socialista.
Desunião
Desde o início, a luta armada não foi unanimidade na esquerda. O velho PCB era irredutivelmente contra armas. “Discordo das ações isoladas que nada adiantarão ao desenvolvimento do processo revolucionário e somente servirão para agravar a vida do povo brasileiro e motivar maiores crimes contra todos os patriotas”, escreveu o líder comunista Gregório Bezerra em suas Memórias. Nada mal para um preso político libertado em troca do embaixador americano Elbrick, sequestrado pela ANL e pelo MR-8.
Mesmo os que se armaram não concordavam entre si. “A política é um jogo de vaidades, e até na resistência armada as vaidades pessoais se impõem. Foi impossível estabelecer a unidade entre os grupos, e isso explica muito do fracasso da luta”, afirma o jornalista e ex-guerrilheiro Flávio Tavares.
Intelligentsia
A Revolução Cubana teve um impacto imenso no imaginário da esquerda brasileira. A maioria dos grupos armados brasileiros adotou como estratégia de ação o “foquismo”, teorizado a partir do caso cubano. Nesse modelo, um pequeno foco guerrilheiro libertador conquista o apoio das “massas oprimidas”. E, com sua adesão, consegue derrubar o regime. Mas isso era uma simplificação grosseira do que ocorreu na Cuba pré-revolucionária. E, pela simplificação, o foquismo não deu certo em nenhuma outra parte do mundo.
No Brasil, estudantes e intelectuais conseguiram formar grupos revolucionários vanguardistas, mas não atraíram o apoio popular. A ALN, por exemplo, tinha 237 estudantes e diplomados, contra apenas 68 trabalhadores braçais. Dos processos de crime político na Justiça Militar, 58% não envolviam proletários, mas estudantes ou pessoas com diploma universitário.
Uma das razões para a guerrilha ter tão pouco apoio popular foi que o auge da repressão coincidiu com o milagre econômico. Os trabalhadores em nome dos quais se fazia revolução estavam imersos no pleno emprego, no sucesso da Seleção, nas novelas e na propaganda antiterrorista produzida pelo governo. Com pão, circo e medo do socialismo, por que deveriam trocar a ditadura por um grupo de estudantes armados?
A VERDADE: O "Minimanual do Guerrilheiro Urbano" serviu de propaganda, mas era falho demais para ser um guia
Carlos Marighella publicou em 1969 a maior peça de propaganda política da luta armada brasileira – seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano. Suas cópias mimeografadas se multiplicaram na clandestinidade até se tornar, na época, o texto político brasileiro mais reproduzido no exterior. De fato, foi eficaz como propaganda, mas péssimo como guia.
“Marighellla cometeu, no manual, erros e omissões incompreensíveis para um comandante de operações paramilitares, escreve Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada. Não escreveu uma linha sobre esconderijos, e considerou o helicóptero inútil em perseguições, por não pousar na rua ” ignorando sua função essencial para observação.
Mas o mais surreal do Minimanual é seu retrato do guerrilheiro. Como Rambo, deve “suportar a fadiga, a fome, a chuva e o calor”, “nunca ter medo do perigo” e praticar diferentes lutas “de ataque e de defesa pessoal”. O 007 socialista precisa ainda “conduzir um automóvel, pilotar um avião, dirigir um barco a motor ou a vela”. E, como um escoteiro, deve “compreender a mecânica, o rádio, o telefone, a eletricidade e possuir conhecimento de eletrônica, de química, de fabricação de carimbos, o perfeito conhecimento de caligrafia e de imitação das escritas (…), porque é obrigado a falsificar documentos para viver numa sociedade que ele pretende destruir”. Marighella não escreveu um guia, mas uma obra que beira a ficção.
A genealogia da guerrilha
Depois do golpe, dissidentes da esquerda formaram vários grupos guerrilheiros desunidos. Em 1973, já se dissolveram ou se desarmaram. Veja as maiores organizações da época Clique para ampliar (Dossiê SUPER (365)/Superinteressante)
20. "Estudantes sempre se opuseram"
A VERDADE: No início, parte dos alunos foi omissa ou favorável ao golpe. A grande virada veio com a repressão nas universidades
Do golpe de 1964 até o AI-5, em 1968, universitários foram a principal força de oposição ao governo militar, e sua ligação íntima com as classes artística e intelectual acabou criando uma mitologia estudantil libertadora. “Ainda assim, convém evitar qualquer abordagem mistificadora do ativismo estudantil”, afirma o historiador João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos.
Universitários só formaram um movimento social de esquerda na década de 1960. Antes, o ensino superior era elitista demais para isso.
Durante a República Velha (1889-1930), o curso de Direito do Largo São Francisco formou os filhos da elite governante. Oito dos presidentes eleitos naquele período saíram das Arcadas. Seus estudantes eram tão conservadores que, na primeira greve geral do Brasil, em 1917, liderada por anarquistas, eles se ofereceram para substituir os motorneiros nos bondes paralisados.
Na primeira metade da década de 1950, a própria União Nacional dos Estudantes (UNE) foi dirigida por setores vinculados à conservadora UDN.
Dois fatores concorreram para que os estudantes dessem uma guinada à esquerda em 1960. A universidade abriu-se para a classe média. De 27.253 estudantes universitários em 1945, o Brasil saltou para 142.386 no início de 1964. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica forneceu a organização necessária para os estudantes se mobilizarem: a Juventude Universitária Católica (JUC).
Quando a JUC foi criada, em 1930, seu objetivo era forjar futuros líderes católicos na elite intelectual brasileira. Mas, ao longo da década de 1950, a JUC passou a tomar gosto por temas sociais e políticos. Em 1961, já estava tão à esquerda que se aliou ao PCB numa eleição da UNE. Para se livrar de amarras da Igreja, uma ala mais radical abandonou a JUC e criou, em 1962, a Ação Popular (AP) – entre seus membros estava o atual chanceler José Serra. Primeiro, a AP pregou a atuação política junto a movimentos populares. Depois, defendeu as armas.
Guinada à esquerda
O golpe de 1964 não foi acompanhado por uma resistência retumbante entre estudantes. Como no resto da sociedade, parte da comunidade acadêmica apoiou o golpe, ou foi omissa. “Esse quadro inicial funcionou aos olhos dos setores golpistas como uma confirmação de que a UNE e as demais entidades estudantis só dominavam a representação estudantil devido à capacidade `comunista¿ de manipular massas e eleições”, escreve Martins.
Em junho de 1964, Castelo propôs ao Congresso extinguir as organizações estudantis – ele queria acabar com os “estudantes profissionais” comunistas. Professores de esquerda também sofreram. Quatro reitores foram depostos. Na USP, o sociólogo Florestan Fernandes foi preso e seu assistente Fernando Henrique Cardoso exilou-se no Chile. Dois professores de medicina foram enviados a um navio-presídio, depois de terem sido denunciados por colegas.
No curto prazo, as cassações e os inquéritos desorganizaram a esquerda universitária. Mas, no longo prazo, o efeito foi exatamente o contrário. Liberais e moderados que haviam apoiado o golpe se opuseram ao regime. A repercusão externa também pesou. Mais de 20 universidades europeias e americanas, lideradas pelo prêmio Nobel Werner Heisenberg, tinham protestado em 1965 contra a perseguição ao físico Mario Schenberg, da USP.
O que o regime não percebeu foi que a clandestinidade aproximaria universitários de antigos dirigentes comunistas, grupos revolucionários, brizolistas radicais e centenas de sargentos e suboficiais expulsos pelo expurgo nas Forças Armadas. Segundo o sociólogo Marcelo Ridenti, 30,7% das pessoas processadas por ligação com esquerdas armadas eram estudantes. Assim, enquanto o Rio organizava a Passeata dos Cem Mil, em 1968, a Vanguarda Popular Revolucionária jogou uma caminhonete com 50 kg de dinamite contra o Quartel-General do 2º Exército, em São Paulo, matando o soldado Mário Kozel Filho, de 18 anos. Agora, a luta dos estudantes contra o regime era armada.
1968, o ano que não foi
Por meses, a classe média que tinha apoiado o golpe ficou ao lado dos estudantes em protestos contra a ditadura
28 DE MARÇO
A PM carioca mata a tiro o secundarista Edson Luís, 17, que participava de protesto no bandejão Calabouço. Colegas velaram o corpo na Assembleia Legislativa. Depois, um cortejo de 50 mil o levou ao cemitério.
1º DE ABRIL
No 4º aniversário do golpe, alunos e policiais se enfrentam no centro do Rio. De 56 feridos, 30 eram policiais.
4 DE ABRIL
É celebrada mais de uma centena de missas de 7º dia em memória a Edson Luís. A maior delas, na Candelária, foi seguida por pancadaria do esquadrão de cavalaria da PM.
20 DE JUNHO
Estudantes ocupam a reitoria da UFRJ. Centenas deles são presos, levados ao campo do Botafogo, espancados e humilhados. No dia seguinte, o centro do Rio foi tomado por manifestações, nas quais morreram 27 civis e um PM, com a cabeça esmagada por tijolo.
26 DE JUNHO
O centro do Rio é tomado pela Passeata dos Cem Mil, com apoio de um grupo diverso – estudantes, artistas, esquerdistas, religiosos, liberais e membros da classe média, indignada com a truculência policial.
13 DE OUTUBRO
O movimento estudantil é desmantelado com a prisão de praticamente toda a liderança universitária brasileira no 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, SP. A entidade só voltaria a existir depois de 1979. Enquanto isso, parte das suas lideranças migrou para a luta armada. Em dezembro, a ditadura baixava o AI-5 e a luta começava para valer.
21. "O terror vinha só da esquerda"
A VERDADE: Grupos de extrema-direita realizaram atentados, sobretudo contra artistas e intelectuais
Em 1968, a ditadura estava no vai ou racha. O presidente Costa e Silva vacilava entre tolerar o retorno das manifestações de rua – que voltaram após quatro anos de quase silêncio – ou ameaçar o estado de sítio. Conforme aumentaram os ataques da esquerda armada, a linha dura militar decidiu agir por conta própria. Oficiais de baixa patente reuniam-se no Centro de Informações do Exército (CIE) e traçaram sua estratégia. “Definimos qual era o campo mais fraco e decidimos que era o setor de teatro”, disse o coronel Luiz Helvécio Silveira Leite, num depoimento de 1985. “A gente invadia, queimava, batia, mas nunca matava ninguém.”
Em junho, a Maison de France recebia uma montagem de O Burguês Fidalgo, comédia de Molière que satiriza o alpinismo social na França de Luís 14. Embora Molière tenha nascido dois séculos antes de Karl Marx, a extrema-direita julgou o nome comunista e plantou uma bomba no teatro carioca.
Depois, seguiram explosões nos teatros Gláucio Gil e Opinião, também no Rio, nas faculdades de Belas Artes e de Direito da URFJ, na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, na Associação Brasileira de Imprensa, na Livraria Civilização Brasileira – uma editora de obras de esquerda -, no depósito do Jornal do Brasil e no Correio da Manhã. Também foram alvos a representação comercial da URSS e a embaixada polonesa.
A orientação do CIE era de se limitar ao “terrorismo branco”, sem mortos. Mas o brigadeiro João Paulo Moreira Brunier queria mais. Em junho de 1968, planejou instalar bombas na embaixada dos EUA e em empresas americanas, destruir a represa que abastecia o Rio e explodir o gasômetro da cidade. Tudo para culpar a esquerda. O capitão Sérgio de Miranda Carvalho denunciou o plano do brigadeiro, mas tudo acabou abafado pelo ministro da Aeronáutica – que, além do mais, demitiu o delator.
“Mais do que indiferença, há, no comportamento do governo, estímulo à violência”, afirmou um editorial do Correio da Manhã. A conivência do regime permitiu a consolidação de um grupo delinquente e impune, que continuaria a agir na comunidade de segurança da ditadura.
Os atentados não vinham apenas da anarquia militar. Paralelamente, ganhava notoriedade o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – um grupo paramilitar de extrema-direita formado em São Paulo, ainda em 1963, por estudantes conservadores. A estratégia era a mesma do baixo oficialato do CIE: atacar artistas e intelectuais. E, na época, poucos alvos eram tão evidentes quanto o teatro Ruth Escobar, que encenava Roda Viva, de Chico Buarque.
Na peça, o diretor José Celso Martinez Corrêa montava cenas eróticas entre a Virgem Maria e Jesus, transformava capacete militar em penico e jogava na plateia um fígado de boi dilacerado. Um cardápio de provocações a conservadores. Em 17 de julho, dezenas de membros do CCC invadiram o teatro, depredaram suas instalações e espancaram o elenco, com cassetetes e socos-ingleses. Fizeram um corredor polonês até a rua, onde os atores continuaram apanhando diante da plateia e de policiais indiferentes.
Em outubro, a trupe seguiu para Porto Alegre. Às vésperas da estreia, o CCC distribuiu panfletos contra a peça. No dia 2, o grupo agrediu novamente o elenco e sequestrou dois artistas por algumas horas.
Enquanto isso, em São Paulo, os dois extremos políticos conviviam em calçadas opostas na rua Maria Antônia. De um lado, a Faculdade de Filosofia da USP concentrava lideranças do movimento estudantil. Do outro, a Universidade Presbiteriana Mackenzie abrigava membros do CCC, e seu curso de Direito atraía aspirantes a delegado de polícia.
No dia 2 de outubro, secundaristas faziam um pedágio na Maria Antônia para financiar o 30º Congresso da UNE. Alguns estudantes do Mackenzie inconformaram-se. De insultos, o desentendimento escalou para o lançamento de um ovo, que virou pedra, que virou tijolo, que virou ameaças de invasão, que viraram dois dias de luta, com o incêndio do prédio da Filosofia e a morte do secundarista José Carlos Guimarães por bala perdida.
Com o AI-5, os atentados de direita reduziram-se – mas não por terem sido reprimidos. Pelo contrário. Esse setor anárquico e delinquente das Forças Armadas tornou-se parte da comunidade de segurança da ditadura, que fez da tortura e do extermínio políticas de Estado. O terrorismo clandestino da extrema-direita pode ter sido “branco”. O terrorismo de Estado, não.
AUTOR: SUPERINTERESSANTE
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