BBC - Vocês perceberam que aquele poderia ser um momento histórico?
Kline - Não, com certeza não percebi na época.
Duvall - Na verdade, não. Aquilo foi mais uma etapa vencida no contexto maior do trabalho que desenvolvíamos no SRI, que realmente acreditávamos que teria grande repercussão.
BBC - Quando Samuel Morse enviou a primeira mensagem por telégrafo, em 1844, ele teve um impulso dramático e teclou "O que Deus fez" em uma linha, de Washington DC para Baltimore, no Estado americano de Maryland. Se vocês pudessem voltar atrás, teriam criado alguma frase memorável?
Kline - Claro que sim, se eu tivesse percebido a importância. Mas estávamos apenas tentando fazer aquilo funcionar.
Duvall - Não. Aquele foi o primeiro teste de um sistema muito complicado, com muitas peças em movimento. Ter aquele trabalho complexo justamente no primeiro teste, por si só, já foi dramático.
BBC - Qual foi a sensação depois de enviar a mensagem?
Duvall - Estávamos sozinhos nos nossos respectivos laboratórios, à noite. Nós dois estávamos felizes depois de termos um primeiro teste tão bem sucedido, coroando tanto trabalho. Fui até um bar local e pedi um hambúrguer e uma cerveja.
Kline - Fiquei feliz porque funcionou e fui para casa dormir um pouco.
BBC - O que vocês esperavam que a Arpanet se tornasse?
Duvall - Eu considerava o trabalho que estávamos fazendo no SRI como uma parte fundamental de uma visão maior, com os profissionais da informação conectados entre si e compartilhando problemas, observações, documentos e soluções.
O que nós não víamos era a adoção comercial, nem previmos o fenômeno das redes sociais e o flagelo decorrente da desinformação.
Mas é preciso observar que, no tratado de 1962 [do cientista da computação do SRI] Douglas Engelbart [1925-2013], descrevendo sua visão geral do projeto, ele indica que as capacidades que estávamos criando trariam profundas mudanças para a nossa sociedade. E que seria preciso usar e adaptar simultaneamente as ferramentas que estávamos criando para combater os problemas decorrentes do seu uso em sociedade.
BBC - Quais aspectos da internet de hoje fazem vocês se recordarem da Arpanet?
Duvall - Com referência à visão maior que estava sendo criada no grupo de Engelbart (o mouse, edição total na tela, links etc.), a internet de hoje em dia é uma evolução lógica daquelas ideias, amplificada, é claro, pela contribuição de muitas pessoas e organizações brilhantes e inovadoras.
Kline - A capacidade de usar recursos de outras pessoas. É isso o que fazemos quando usamos um website. Estamos usando as possibilidades oferecidas pelo site, seus programas, funções etc. E, é claro, o e-mail.
A Arpanet praticamente criou o conceito de roteamento e os diversos caminhos de um local para outro. Aquilo ofereceu confiabilidade para o caso de falhas nas linhas de comunicação.
E também permitiu o aumento da velocidade de comunicação, utilizando diversos caminhos simultâneos. Todos estes conceitos foram transferidos para a internet.

Atualmente, o local onde ocorreu a primeira transmissão via internet – a sala 3420 do UCLA Boelter Hall – é um monumento à história da tecnologia. UCLA
Enquanto desenvolvíamos os protocolos de comunicação para a Arpanet, encontramos problemas, reprojetamos e aprimoramos os protocolos, aprendendo muitas lições que foram levadas para a internet.
O TCP/IP [o padrão básico de conexão à internet] foi desenvolvido para interconectar redes, particularmente a Arpanet com outras redes, e também para melhorar o desempenho, a confiabilidade e muito mais.
BBC - Como vocês se sentem neste aniversário?
Kline - É uma mistura de sentimentos. Pessoalmente, acho importante, mas um pouco exagerado.
A Arpanet e tudo o que ela gerou é muito significativo. Para mim, este aniversário específico é apenas mais um dentre muitos eventos.
Acho que um pouco mais importante do que este aniversário foi a decisão da Arpa de construir a rede e continuar apoiando o seu desenvolvimento.
Duvall - É bom lembrar a origem de algo como a internet, mas o mais importante é o enorme trabalho desenvolvido desde aquela época para transformá-la em uma parte importante das sociedades em todo o mundo.
BBC - A web moderna é dominada não pelo governo, nem por pesquisadores acadêmicos, mas por algumas das maiores empresas do mundo. Qual é a sua impressão sobre o que a internet se tornou? Quais são as suas maiores preocupações?
Kline - Nós a usamos no nosso dia a dia e ela é muito importante. É difícil imaginar como seria se não tivéssemos novamente a internet.
Um dos benefícios de uma internet tão aberta e não controlada por um governo é a possibilidade de desenvolver novas ideias, como as compras online, serviços bancários, streamings de vídeo, sites jornalísticos, redes sociais e muito mais. Mas, por ter se tornado tão importante nas nossas vidas, ela é alvo de atividades nocivas.
Ouvimos constantemente como certas atividades são prejudicadas. Existe uma imensa falta de privacidade.
E as grandes empresas (Google, Meta, Amazon e provedores de serviços de internet, como a Comcast e a AT&T) detêm poder demais, na minha opinião. Mas não sei ao certo qual seria a solução correta.

Em dezembro de 1969, a Arpanet conectou alguns poucos centros de informática espalhados pelos Estados Unidos – uma amostra minúscula, em comparação com os cerca de 50 bilhões de pontos que compõem a internet hoje em dia UCLA
Duvall - Acho que o domínio por qualquer entidade isolada é um grande risco.
Temos visto o poder da desinformação para orientar a política e as eleições. Também vimos o poder das empresas de influenciar os rumos das normas sociais e a formação de jovens e adultos.
Kline - Um dos meus maiores temores tem sido a difusão de informações falsas. Quantas vezes você já ouviu alguém dizer "vi na internet"?
As pessoas sempre conseguiram espalhar informações falsas, mas custava dinheiro enviar pelo correio, instalar um outdoor ou fazer um anúncio na TV.
Agora, é fácil e barato. E, como atinge milhões de pessoas, aquilo é repetido e tratado como fato.
Outro temor é que, quanto mais os sistemas básicos se mudarem para a internet, mais fácil fica causar prejuízos sérios se estes sistemas forem derrubados ou comprometidos. Por exemplo, não só os sistemas de comunicação, mas os bancos, serviços públicos, transporte etc.
Duvall - A internet tem grande poder, mas, por não termos dado atenção ao alerta de Engelbart em 1962, não usamos o poder da internet eficientemente para administrar os seus impactos sociais.
BBC - Existe alguma lição do seu tempo na Arpanet que poderia fazer da internet um lugar melhor para todos?
Kline - A abertura da internet permite a experimentação e novos usos, mas a falta de controle pode gerar riscos.
A Arpa manteve algum controle da Arpanet. Com isso, eles conseguiam ter certeza de que tudo iria funcionar, podiam tomar decisões sobre os protocolos necessários e lidar com questões como nomes de sites e outros problemas.
A Icann [Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números, na sigla em inglês] ainda administra uma parte, mas têm surgido divergências internacionais sobre como seguir adiante, se os Estados Unidos detêm controle demais etc.
Ainda precisamos de alguns controles para manter a rede funcional. E, como a Arpanet era relativamente pequena, podíamos experimentar mudanças importantes de projeto, protocolo e outras. Agora, isso seria extremamente difícil.
Duvall - Estamos frente a um precipício com a inteligência artificial e seu consequente acesso para todos os que fazem uso da internet.
A internet cresceu e se desenvolveu de forma explosiva nos seus primeiros dias – e parte disso trouxe prejuízos à sociedade. Agora, a IA ocupa a mesma posição e é inseparável da internet.
Não é fora de propósito considerar a IA como uma ameaça existencial. E este é o momento de reconhecer os seus riscos e seu potencial.
FONTE: BBC