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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

'MEU PAI É UM GENOCIDA': AS FILHAS DE TORTURADORES NA ARGENTINA QUE ROMPERAM O SILÊNCIO SOBRE 'SEGREDO FAMILIAR'

'Somos filhas biológicas desses genocidas, mas repudiamos o que nossos pais fizeram', diz Paula, cujo pai trabalhava para a polícia secreta Foto: Paula / Historias Desobedientes/Via BBC

"Pai, é verdade que você matou centenas de pessoas"? Certamente, esta não é uma pergunta que os filhos sentem a necessidade de fazer aos pais. Mas para um grupo de mulheres na Argentina, se tornou urgente e inevitável.

Os pais delas foram acusados ​​e, em muitos casos, condenados por alguns dos piores crimes cometidos na história recente do país — eles eram policiais e militares na época da ditadura.
Por quase sete anos, desde o golpe em 1976, os governos militares que controlaram a Argentina perseguiram seus oponentes políticos — comunistas, socialistas, estudantes, artistas, líderes sindicais... todos que consideravam uma ameaça — e sequestraram, torturaram e mataram milhares de cidadãos.
Analía com seu pai, Eduardo Emilio Kalinec Foto: Analía Kalinec/Via BBC

Esta é a história de duas filhas destes homens que, depois de quatro décadas, levantam publicamente suas vozes contra seus pais.

O temido Doutor Kanalía

Kalinec, de 40 anos, tem olhos claros, grandes e silenciosos. Ela se apresenta e conta sua história: "Sou professora, psicóloga, mãe de dois filhos... e também filha de um genocida.

Meu pai nasceu em 1952, no seio de uma família de classe média que tinha dificuldades econômicas. Ele abandonou os estudos no terceiro ano do ensino médio e decidiu entrar na Polícia Federal por volta de 1973, muito jovem.
Os Kalinec eram uma 'família típica', que se reunia para comer churrasco, ir ao clube da polícia e pescar Foto: Analía Kalinec/Via BBC

Nasci na ditadura e sempre soube que meu pai era policial, não nos perguntávamos o que ele fazia ou deixava de fazer. Em casa, ele era um pai muito presente, mas nunca perguntei nada a ele.

Éramos uma 'família típica', que se reunia para comer churrasco, ir ao clube da polícia e pescar... Meu pai era o pai provedor, muito querido, muito respeitado dentro de casa.
Nós éramos quatro irmãs e vivíamos na nossa bolha. Depois, fomos nos casando e tendo filhos, como esperavam de nós. Fui a última das quatro, casei com apenas 22 anos... imagine!
Tanques e soldados em frente à Casa Rosada, em Buenos Aires, em 24 de março de 1976 Foto: AFP/Via BBC

E a vida era assim. Até o ano de 2005.

Era o último dia de agosto. Eu estava em casa quando recebi uma ligação. Era minha mãe. 'Olha, não entre em pânico, seu pai está preso. Mas fique tranquila, ele vai sair (de lá)'.

Até essa ligação, eu nunca havia relacionado meu pai à ditadura, nem de longe... nem de longe."
Eduardo Kalinec, então um policial jovem, era conhecido como o temido Doutor K Foto: Analía Kalinec/Via BBC

O comissário Eduardo Emilio Kalinec foi mantido em prisão preventiva. Ele havia sido mencionado no depoimento de testemunhas e denunciado por crimes graves: 181 vítimas, acusações de sequestro, tortura e assassinato. E tranquilizou a família dizendo que se tratava de uma jogada política contra ele.

"No dia seguinte àquela ligação, visitamos meu pai na prisão. E ele nos disse que não precisávamos acreditar em nada, que muitas mentiras seriam ditas, mas que ele não tinha nada a se arrepender. Que ele tinha saído para lutar em uma guerra e que isso estava acontecendo agora porque 'revanchistas de esquerda' chegaram ao poder (uma alusão ao governo do então presidente Néstor Kirchner).
Quando a junta militar assumiu o controle do país, as forças de segurança perseguiram aqueles que consideravam 'subversivos' Foto: Getty Images/Via BBC

Não entendi nada, para mim a ditadura era algo do passado. Eu estava totalmente alheia ao que estava acontecendo no país. Eu trabalhava em uma escola particular, costumava encontrar minhas irmãs no fim de semana, circulávamos entre famílias de colegas policiais do meu pai — e esse era meu círculo.

Eu não tinha acesso a muitas informações e tampouco tinha interesse. Meus pais também procuraram manter uma postura de neutralidade, 'não nos metemos em política, somos apolíticos'.

Quando meu pai foi preso, comecei com muita dificuldade a colocar tudo dentro de um contexto. Os três primeiros anos foram de negação absoluta. De entender a ditadura, entender a luta das Mães e Avós (da Praça de Maio) e sentir empatia com elas, mas de dizer que meu pai não teve nada a ver com isso. Que foi um erro, que os julgamentos estavam indo bem, mas que estavam errados em relação a meu pai.
O centro clandestino de detenção El Olimpo, onde Kalinec torturava, funcionou por 17 meses Foto: Valeria Perasso/Via BBC
Até que, em 2008, eles levaram o caso dele a julgamento. E comecei a pensar que o que meu pai estava me dizendo não era bem verdade... "

Kalinec foi um dos 15 réus no primeiro julgamento do chamado Circuito ABO — sigla para os centros clandestinos de detenção Atlético, Banco e Olimpo, que operaram sucessivamente entre 1976 e 1979. Tanto os acusados quanto muitos presos foram transferidos de um centro para outro.
Estima-se que cerca de 500 presos tenham passado pelo centro de detenção clandestino El Olimpo, localizado no bairro de Flores Foto: Arquivo Conadep/Via BBC

"Eu li o processo, que até aquele momento eu não tinha lido. Li com muita velocidade e pedindo para 'que o nome dele não apareça, por favor, que o nome dele não apareça'. Não queria pular nenhuma linha para ter certeza de que não havia perdido nada, e de repente apareceu... Kalinec. Lembro claramente daquele momento.

Eu li os relatos das testemunhas, as descrições do que havia sido um campo de concentração. Criar todo esse mapa na minha cabeça e colocar meu pai dentro dele tornou tudo inaceitável e difícil."

Para os sobreviventes que testemunharam, o pai de Analía era o "Doutor K". Muitos torturadores usavam um pseudônimo para esconder sua verdadeira identidade.
A maioria dos presos que passaram pelo circuito ABO ainda está desaparecida Foto: Arquivo Conadep/Via BBC

"Eu sabia que chamavam ele de Doutor K porque ele havia me contado, mas depois negou. Uma vez perguntei por que, e ele me disse que era chamado de doutor porque sempre foi muito correto e parecia um advogado.

Para meu marido, ele deu outra explicação, disse que era por causa de um produto de limpeza que havia na época, a marca Doutor K: era ele quem fazia a limpeza. Terrível. E depois (eu descobri) outro fato não menos importante: ele era o doutor, e a sala de tortura era chamada de sala de cirurgia.

Em seguida, procurei respostas no único lugar que podia: dentro da minha própria família. E deparei com um pai que queria justificar o injustificável e que, quando o repreendi, dizendo 'como você não fez nada, se há todos esses depoimentos no processo?', ele acabou confirmando o que eu temia.

E admitiu sua participação.
Eduardo Emilio Kalinec durante o julgamento, ele foi condenado à prisão perpétua Foto: CIJ/Via BBC

Meu pai, hoje com 67 anos, fazia parte dos grupos que sequestravam e levavam as pessoas aos centros de detenção clandestinos. Ele tinha 24 ou 25 anos na ditadura. Não dava ordens, apenas executava.

E, mesmo assim, em alguns trechos dos depoimentos, os sobreviventes dizem que era conhecido como alguém muito cruel dentro dos campos de concentração. Eles temiam mais alguns repressores do que outros. E meu pai era um daqueles que metiam medo."

As vozes das vítimas

Dezenas de testemunhas, em diferentes instâncias judiciais, apontaram Eduardo Kalinec como participante de interrogatórios e sessões de tortura nos centros clandestinos.
Quinze acusados no primeiro julgamento do circuito ABO — na foto, Kalinec olha suas anotações na segunda fileira, o segundo a partir da esquerda Foto: CIJ/Via BBC
Oito delas durante o julgamento do circuito ABO, que o levou a ser condenado à prisão perpétua. Ele foi descrito como um jovem de cabelos escuros, atarracado, com pescoço grosso e voz aguda.

"Muito temido" e "muito cruel" com os presos, segundo os relatos.

Ana María Careaga tinha 16 anos e estava grávida de três meses quando foi levada. O Doutor K a chutava toda vez que a via no banheiro. Em uma ocasião, ele a repreendeu aos gritos por não dizer que estava grávida. "Você quer que eu abra suas pernas e te faça abortar?"

Miguel D'Agostino o identificou como um dos três homens que o submeteram a cinco dias de interrogatório com choque elétrico na "sala de operações".

Delia Barrera também foi vítima de tortura durante os 92 dias em que ficou detida em El Atlético. Era 1977, e ela tinha 22 anos.
Paula soube que o pai trabalhava para serviços de inteligência quando tinha 14 anos Foto: Paula / Historias Desobedientes

"Estava encapuzada, havia muitas vozes ao meu redor. Até que uma voz diz 'comecem', e começaram a me bater. Me arrastaram pelo cabelo para o que chamavam de sala de operações. Havia três salas, e se ouvia quando torturavam outras pessoas na sala ao lado", contou Barrera à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

"Eles me obrigaram a me despir. Me amarraram a uma cama de metal, abriram minhas pernas, prenderam um cabo no polegar do meu pé esquerdo e me fizeram ouvir um barulho: 'shhhhh'. E me disseram: 'Você já conhece? Bem, agora vocês vão se conhecer'. E começaram os choques elétricos."

"Me acusaram de colocar bombas no departamento de polícia, o que eu nunca fiz. Me pediram nomes de colegas de militância. E a tortura não parava... "

Após uma sessão de tortura, ela conheceu Kalinec.

"Eles me bateram muito e me levaram para a enfermaria, um repressor a quem chamavam de Doutor K me interrogou, então pensei: 'Ah, um médico'."

"Ele disse que eu tinha quebrado as costelas, mas que não iria me enfaixar porque eu podia me enforcar com as ataduras. Consegui dar uma espiada, o capuz estava meio levantado e nunca esqueci o rosto de Kalinec. No julgamento, estava com gel no cabelo, mas ainda tinha o bigode. Quando os juízes me perguntaram se eu reconhecia alguém, eu disse: 'Aí está o Doutor K, Kalinec'. Eu não poderia esquecer Kalinec."
Soldados revistam um civil em Buenos Aires, em 1977 Foto: Getty Images/Via BBC

Delia foi libertada e viveu para contar esta história, com sequelas físicas e mentais. Traumas do choque elétrico, uma costela mal cicatrizada, repetidas tentativas de suicídio.

Outros não tiveram a mesma sorte. Entre eles, seu marido Hugo Alberto Scutari. Ela não voltou a vê-lo desde que dividiram uma cela por algumas semanas no El Atlético. Hoje, ele é um dos presos políticos do regime desaparecidos: as organizações de direitos humanos estimam que são cerca de 30 mil, embora não haja um consenso sobre o número exato.

As cartas
Analía confrontou o pai com as evidências apresentadas no processo judicial.
Paula, quando era criança, com o pai: 'Nunca o vi de uniforme' Foto: Paula / Historias Desobedientes/Via BBC

"Depois de uma conversa na prisão, onde ele ficou muito desconfortável e nervoso, senti uma espécie de libertação. Voltei para casa e escrevi Carta aberta a um repressor. Na minha família, sempre escrevíamos cartas. E usei o nome 'repressor'. Agora é completamente naturalizado, mas essa palavra precisou ser colocada... E como eu não podia dizer na cara, eu escrevi."

Aquele dia na prisão foi, sem que eu soubesse, a última vez que vi meu pai.

Não imaginava nem de longe a dimensão que a rebeldia de me atrever a duvidar dele tomaria. Além disso, havia toda a censura da minha mãe e das minhas irmãs: 'Como você vai dizer isso a ele, justo neste momento em que ele mais precisa de nós, temos que estar unidos, e você vem com isso!'.

Minhas irmãs, que também são policiais, sempre ficaram do lado do meu pai. Hoje, não me relaciono com elas.
Protesto das Mães da Praça de Maio em 1986 Foto: Eduardo Longoni / Getty Images/Via BBC

Naquela época, também comecei, além das cartas, a fazer um registro narrativo pessoal pensando nos meus filhos — e em como explicar a eles que, de repente, ficaram sem avós, sem primos, sem tias.

E a coisa começou meio verborrágica, contei a eles toda a verdade. Ao ponto de um dia me ligarem da creche: 'Olha, precisamos marcar uma reunião, porque Gino (filho mais velho, então com 4 anos) disse aos colegas de turma que o avô dele estava na prisão porque havia matado muitas pessoas'. E os colegas começaram a perguntar se ele tinha metralhadoras, se tinha tanques... A professora ficou chocada.

É um exercício constante conciliar essa imagem do Doutor K com a do pai amável. No que se refere à vida em família, lembro dele fazendo cócegas, nos abraçando...

Em um primeiro momento, a dissociação foi mais forte. Me lembro de dizer 'de um lado está meu pai, e do outro lado, o genocida'. Mas ao trabalhar isso na terapia, acabei reconhecendo que não, que é sempre a mesma pessoa, uma única pessoa com uma parte que mantém oculta, mas que faz parte dela e que não me engana mais."
Analía (ao centro), junto a outros familiares de genocidas, decidiu formar a organização Histórias Desobedientes Foto: Historias Desobedientes/Via BBC
Kalinec foi condenado à prisão perpétua em dezembro de 2010 por homicídio qualificado, tortura e privação ilegítima de liberdade, crimes agravados por terem sido cometidos por um funcionário público. Ele nega as acusações.

Dos quase 3,3 mil investigados por crimes contra a humanidade desde que os julgamentos foram reabertos, em 2007, 962 pessoas foram condenadas em 238 processos, segundo o último relatório da Procuradoria de Crimes contra a Humanidade. Ainda há mais de 350 processos em tramitação.

Agente da polícia infiltrado

Mas nem todos os ex-membros das forças de segurança chegam ao banco dos réus. O pai de Paula* é um deles.
O grupo publicou um livro coletivo, chamado 'Escritos desobedientes' — na imagem, Paula na apresentação da publicação Foto: Valeria Perasso/Via BBC
"Nasci em Buenos Aires em 1980, quando a ditadura estava em pleno apogeu.

Desde que me dei conta de que o que havia acontecido na ditadura era responsabilidade do meu pai, que ele havia trabalhado para eles, esse sentimento de vergonha e culpa me acompanha, como se eu fosse cúmplice. Porque eu sei tudo isso e não há nada que eu possa fazer. Guardo um segredo que não quero guardar.

Meu pai nunca foi levado à justiça. Como tenho certeza de que ele é culpado? Bom, porque ele me disse. Eu sei que ele fez parte da repressão, porque ele me disse. Meu pai trabalhava para os serviços de inteligência, provavelmente como espião.
Bruno, de 12 anos, é o filho mais novo de Analía — ele acompanha a militância da mãe Foto: Valeria Perasso/Via BBC

Quando eu tinha 14 anos, meu pai levou meu irmão e eu para tomar um café e nos disse que era policial. Não tínhamos ideia. Ele contou que havia participado da "guerra contra a subversão", como ele chamava. E estava orgulhoso, se sentindo um herói. Naquela época, eu não entendi. Demorou um tempo, levei uns dois meses para digerir a informação.

Ele costumava se infiltrar em diferentes grupos de estudantes, de assistentes sociais ou de qualquer perfil que os militares não gostassem. E 'marcava' os militantes, passando o nome deles aos seus superiores.

Ele era muito jovem, tinha 20 e poucos anos e, pelas fotos que havia em casa, não parecia um policial. Ele tinha cabelos compridos e usava camisas largas, como qualquer cara nos anos 1970. O que eu sabia é que ele era advogado.

Não socializávamos com outros policiais, em casa ouvíamos música 'proibida' como (Joan Manuel) Serrat... Se você visse meu pai, não diria 'olha, um policial'. Na minha casa, nunca vimos um uniforme. Nunca.

Quando ele nos contou tudo, eu o confrontei. E disse: 'Não importa se eles fizeram algo ou não. Você não pode sequestrá-los e torturá-los! Não pode matar porque são, segundo você, subversivos! É simples, ninguém pode fazer isso, e muito menos o Estado poderia fazer'.

Eu tive essa conversa com ele muitas vezes. 'Eles eram terroristas', repetia ele. E daí? Digamos que fossem: você precisa agir dentro da lei. 'Você não entende, a ameaça comunista estava chegando', ele me repreendia. 'Não importa, pai. Não é razão para matar, torturar, estuprar e sequestrar crianças. De maneira nenhuma'.
Argentinos vão às ruas todos os anos em memória das vítimas do regime militar Foto: Valeria Perasso/Via BBC

Dez anos depois de descobrir o segredo da família, Paula cortou relações com o pai.

"Família é família... Então, eu tive de continuar convivendo com ele, depois fiquei sem vê-lo por um tempo porque estava com muita raiva. E era assim, idas e vindas, em parte porque minha mãe insistia: 'É seu pai, como você não vai vê-lo?' Mas quando minha mãe morreu, me senti mais livre e decidi dar um ponto final. Cortei relações com ele. E isso foi há 15 anos.

Não havia mais volta. Ele é uma pessoa horrível, e eu não quero alguém assim na minha vida. Ele sempre repetiu para mim que havia feito o que precisava ser feito, que agiu corretamente, que os crimes foram necessários. Ah, e ele não chamava de crimes, é claro. Ele chamava de 'ações'.

Então, a certa altura, já não me importava mais se ele havia sido condenado ou não, eu sabia o que ele tinha feito porque ele se vangloria disso. Ele fez parte deste mecanismo de violência que defende até hoje.

Eu não tenho boas lembranças, de qualquer maneira. Faço terapia há 15 anos e voltamos com frequência a esse tema: como é possível que não tenha nenhuma lembrança? Sei que há fotos em que somos uma família feliz, mas não tenho esse registro.

Se eu tiver de pensar em uma recordação boa... Deixa eu pensar... Acho que tenho uma... Poderia dizer que meu pai desenhava muito bem. Uma vez, ele desenhou uma Cinderela muito linda. Ele era um bom desenhista.

De resto, me dava medo. Ele tinha uma aura assustadora, digamos. Ele sabia como botar medo. Há um tempo atrás, me encontrei com amigos de infância, estávamos lembrando daquela época e um dos meus amigos me confessou: 'Seu pai era muito assustador'. E eu pensei: 'Sim, eu também tinha medo dele'.

Não era violento, no sentido de que não nos submetia à violência física. Mas era um jogo psicológico."

Histórias Desobedientes

Paula e Analía se encontraram não faz muito tempo com a ajuda das redes sociais. Elas decidiram que queriam se manifestar, sair às ruas, enfrentar a família e repudiar o que seus pais haviam feito aos olhos de todos.

Analía: "Começamos a ver que havia outras filhas e filhos de genocidas que viviam silenciosamente sua rejeição. Nos encontramos. Foi algo espontâneo dizer: 'Temos que fazer alguma coisa, isso é intolerável'. E nos perguntamos como nos apresentaríamos...
E pedem com cartazes: 'Nunca Mais' Foto: Valeria Perasso/Via BBC

Decidimos deixar este lugar de parentes de genocidas, repudiamos os crimes e abraçamos as bandeiras da memória, verdade e justiça. Decidimos nos chamar de Histórias Desobedientes. Fizemos uma bandeira e saímos marchando para a praça. Na primeira vez, éramos quatro, todas mulheres, cheias de energia e alegria..."

Paula: "Quando descobri (o grupo), foi um despertar: 'Meu Deus, eu sabia que não poderia ser a única!' Sinto que as pessoas no grupo me entendem como ninguém. Imagina, eu sei quem é meu pai desde os 14 anos e nunca conversei com ninguém.
A primeira pessoa para quem eu contei foi minha psicóloga, mas depois guardei esse segredo por 23 anos até encontrar com elas (há menos de dois anos). É uma loucura... tenho 39 anos e vivi 23 anos em silêncio."
Barrera testemunhou em vários processos: 'Para mim, contar o que aconteceu é uma missão de vida' Foto: Valeria Perasso/Via BBC

Analía: "Sim, sim. Temos uma necessidade de expressão muito forte. Estamos sempre fazendo manifestos, redigimos um livro coletivo, um projeto de lei que tenta mudar a legislação argentina que hoje impede que um filho testemunhe contra os pais.

Queremos garantir que isso não se aplique em casos de crimes contra a humanidade — e possamos falar se soubermos de algo que pode contribuir com os processos judiciais."
Paula: "Quando você guarda um segredo por tanto tempo, conversar ajuda a lidar com a vergonha, um sentimento que muitos de nós compartilhamos no coletivo. Vergonha porque você sabe o que sabe, porque precisa se calar, porque tem medo do que as pessoas vão pensar.
Liliana Furió (à esquerda) é filha de um militar condenado, atualmente senil e em prisão domiciliar. Com Analía, ela fundou o coletivo Histórias Desobedientes Foto: Valeria Perasso/Via BBC

É por isso que é importante 'sair do armário'. E sair coletivamente é muito mais poderoso. Porque podemos desafiar esses repressores de um lugar que ninguém pode: o lugar de filhas ou filhos. Sabemos que eles não se arrependeram, sabemos que guardam segredos em um pacto inabalável de silêncio, segundo o qual ninguém conta o que fez na ditadura."

Analía: "Ainda estou esperando meu pai falar. Eu sei que ele tem informações confidenciais. Sobre os desaparecidos, talvez sobre algum bebê que foi sequestrado e entregue a famílias que apoiavam o governo militar.

Ao contrário de outros agentes da repressão que estão senis, meu pai está lúcido, tem uma memória prodigiosa. E saber o dano que continua provocando com seu silêncio cúmplice e criminoso me machuca muito."

Acabou o amor?

A presença dos "desobedientes" nas manifestações por direitos humanos nas ruas de Buenos Aires ainda surpreende muita gente. Eles são um interlocutor novo — e nem todo mundo conhece o coletivo que os une.

Olham para eles com surpresa, com perplexidade. E os aplaudem quando passam, elogiam sua coragem.

Mas a presença deles também incomoda alguns sobreviventes e parentes de vítimas — vários, na verdade, se recusaram a participar desta reportagem.

"Sou uma pessoa muito dura diante de algumas coisas. Os filhos desobedientes tiveram a oportunidade de denunciar seus pais e não fizeram. Por que não fizeram isso antes?", critica a sobrevivente Delia Barrera.

"Porque quando você fala 'meu pai é isso' e depois diz que o ama, eu escuto e penso: 'Estamos na direção errada. Você não pode amar um repressor genocida. Me diz que você não o ama, e é outra história'."

É possível deixar de amar o pai que você já amou uma vez?

"Olha, eu me pergunto isso o tempo todo", admite Analía Kalinec.

"Primeiro, porque foi um relacionamento de enorme afeto mútuo durante minha infância, minha adolescência e parte da minha vida adulta. Mas depois comecei a repensar tudo. Que tanto amor poderia haver ali, se quando começo a discordar dele ou a fazer perguntas, ele quer me deserdar?

Me recuso a renunciar ao pai que tanto amei. Eu sei que há uma parte de mim que quer conservá-lo e eu não quero ser tão cruel comigo mesma.

No coletivo, muitas vezes pensamos sobre isso, consideramos que não podemos amar nossos pais. Quem pode decidir amar ou não amar? Como se apaga o afeto? Como são apagadas as memórias? Então, por enquanto, vivemos com essas contradições."

(Sem) epílogo

Embora as filhas tenham cortado relações com seus respectivos pais há muitos anos, faz muito pouco tempo que quebraram o silêncio publicamente. A história — pessoal, social — delas ainda está sendo escrita.
Muitos aplaudem quando o grupo marcha para pedir justiça. Mas, para outros, eles são uma presença incômoda Foto: Valeria Perasso/Via BBC

Em 2019, Kalinec entrou com um processo de dentro da prisão para que Analía seja excluída da herança da mãe, que morreu em 2015. E fez isso "por razões de indignidade": ele considera que a filha o difama e não deve se beneficiar do dinheiro da família, conforme registrado em uma carta assinada também por suas duas irmãs mais novas.

Em resposta ao processo, Analía indicou que aceitará o que seu pai quer se ele admitir sua culpa e fornecer informações sobre o destino de suas vítimas.

"É cínico o que está acontecendo, mas me parece que o interessante desse julgamento contra mim é que, depois de 12 anos sem nos ver, o diálogo que meu pai me negou agora se transformou em uma conversa por meio de memorandos e advogados, em que ele tem de ler o que tenho a dizer, e em que sigo exigindo que ele diga o que sabe", aponta a filha.

Paula já não tem mais essa opção. Ela recebeu uma ligação do irmão recentemente. Ele contou que seu pai teve um derrame, chegou a ser operado, mas não recuperou a consciência.

"Não fui vê-lo no hospital. Tampouco fui ao funeral", diz Paula à BBC News Mundo.

"Decidi não ir porque pensei que seria desrespeitoso com aqueles que tinham uma relação com ele. E também porque, honestamente, uma parte de mim já estava de luto pelo meu pai."

"Mas vivo ou morto, eu, como filha, ainda me sinto responsável por falar, por dizer que condeno suas ações. Talvez encoraje outros a se manifestarem, para além do vínculo de sangue que tenham com o agressor. Nada disso muda com a morte do meu pai."

*Paula pediu que não publicássemos seu sobrenome, para proteger a identidade de outros membros de sua família.

AUTOR: BBC

sábado, 14 de setembro de 2019

EX-PRESIDENTE LULA: ENTENDA TODAS AS ACUSAÇÕES E PROCESSOS CONTRA ELE QUE FOI DENUNCIADO NOVAMENTE

Lula e um dos irmãos dele, conhecido como Frei Chico, foram denunciados por corrupção passiva. EPA/FERNANDO BIZERRA JR.

A força-tarefa da Lava Jato em São Paulo denunciou nesta segunda-feira (9) o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um dos irmãos dele, Frei Chico, por corrupção passiva.

A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) diz que Frei Chico recebeu R$ 1.131.333,12 por meio do pagamento de "mesadas" de R$ 3 mil a R$ 5 mil, como parte de vantagens indevidas oferecidas a Lula em troca de benefícios obtidos pela Odebrecht.

A defesa de Lula diz que as acusações são "descabidas" e que o ex-presidente jamais ofereceu ao grupo Odebrecht qualquer "pacote de vantagens indevidas".

Além deste caso, há outros processos contra o ex-presidente. A BBC News Brasil explica a seguir as duas denúncias, os sete processos em que Lula é réu, as duas condenações, e o caso em que ele foi absolvido após ser acusado de crime de obstrução de Justiça.

1. Denunciado: mesada para Frei Chico

O MPF denunciou Lula e um dos irmãos dele, José Ferreira da Silva, conhecido como Frei Chico, por corrupção passiva.

Também foram denunciados, por corrupção ativa, o delator e ex-diretor da Odebrecht Alexandrino Alencar, o ex-presidente do grupo, Marcelo Odebrecht, e seu pai, Emílio Odebrecht.

Segundo o MPF, Frei Chico recebeu R$ 1.131.333,12, por meio de pagamento da "mesada". Ainda de acordo com a denúncia, isso era parte de um pacote de vantagens indevidas oferecidas a Lula em troca de benefícios para a empreiteira no âmbito do governo federal.

A defesa de Lula afirmou que a denúncia "repete as mesmas e descabidas acusações já apresentadas em outras ações penais contra o ex-presidente" e que "Lula jamais ofereceu ao Grupo Odebrecht qualquer 'pacote de vantagens indevidas'".

Segundo a nota, "a denúncia não descreve e muito menos comprova qualquer ato ilegal praticado pelo ex-presidente".
Cristiano Zanin Martins, responsável pela defesa do ex-presidente, disse que Lula jamais ofereceu ao Grupo Odebrecht qualquer 'pacote de vantagens indevidas'. ROVENA ROSA/ AGÊNCIA BRASIL

2. Denunciado: nomeação para Casa Civil

Em 2017, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou denúncia contra os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff por obstrução de justiça.

A denúncia se refere à nomeação de Lula, no ano anterior, para ministro da Casa Civil do governo Dilma. Segundo Janot, a decisão teria sido tomada para garantir foro privilegiado ao ex-presidente. Na época, Lula já era alvo de investigações da Lava Jato.

A defesa de Lula nega irregularidades.

3. Réu: empréstimos do BNDES para Angola (Operação Janus)

Para o MPF, Lula cometeu os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influência ao, supostamente, pressionar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a liberar empréstimos para obras da Odebrecht em Angola. A ação de Lula teria se dado entre os anos de 2008 e 2015, segundo a denúncia apresentada em 2016.

O ex-presidente nega e diz que jamais interferiu na concessão de qualquer benefício do BNDES.
Para o MPF, Lula pressionou o BNDES a liberar empréstimos que financiaram obras da Odebrecht em Angola REUTERS/ SERGIO MORAES

4. Réu: terreno para o Instituto Lula

Neste caso, o MPF acusa Lula de receber propina da Odebrecht, inclusive por meio da compra de um terreno em São Paulo no valor de R$ 12 milhões, que seria usado para a construção de uma nova sede para o Instituto Lula.

A empreiteira também teria comprado o apartamento nº 121 do edifício Hill House, em São Bernardo do Campo (SP), no mesmo andar e no mesmo prédio onde Lula vivia antes de ser preso.

A defesa de Lula nega que ele "tenha praticado qualquer crime ou recebido qualquer benefício em troca de atos praticados na condição de Chefe de Estado e Chefe de Governo".
5. Réu: compra de caças (Operação Zelotes)

Lula se tornou réu por de tráfico de influência, lavagem de dinheiro e organização criminosa, no âmbito da Operação Zelotes. O ex-presidente é suspeito de interferir na compra de 36 caças do modelo Gripen pelo governo brasileiro, produzidos pela fabricante sueca Saab, e na prorrogação de incentivos fiscais destinados a montadoras de veículos por meio da Medida Provisória 627 de 2013.

Em ambos os fatos Lula já não era mais presidente. Ele nega irregularidades.

6. Réu: MP das montadoras (Operação Zelotes)

Também no âmbito da Operação Zelotes, a Justiça Federal aceitou denúncia contra Lula por corrupção passiva. Nesse caso, a denúncia se refere ao recebimento de propina para aprovar uma medida provisória (MP 471 de 2009) que prorrogou incentivos fiscais para montadoras.

A defesa diz que Lula jamais praticou qualquer ato ilícito e que é alvo de perseguição política.
Defesa do ex-presidente alega perseguição política em acusações e denúncias REUTERS/LEONARDOBENASSATTO

7. Réu: 'Quadrilhão do PT'

No fim de 2018, o juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10.ª Vara Federal, em Brasília, aceitou denúncia do MPF contra Lula, Dilma Rousseff, os ex-ministros da Fazenda Antonio Palocci e Guido Mantega, e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, por formação de organização criminosa. O caso ficou conhecido como "quadrilhão do PT".

Segundo a denúncia, do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a cúpula do PT recebeu R$ 1,48 bilhão de propina em dinheiro desviado dos cofres públicos.

O advogado Cristiano Zanin, da defesa de Lula, afirmou em nota que a ação é "manifestamente descabida" e que o ex-presidente não cometeu nenhum crime no exercício da Presidência.

8. Réu: Guiné Equatorial e Instituto Lula

Neste caso, o ex-presidente é acusado de receber propina de R$ 1 milhão – paga por empresários brasileiros – em troca de intermediar negócios destes empresários com o líder da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang. O pagamento teria sido feito de forma dissimulada, por meio de uma doação ao Instituto Lula.

O ex-presidente nega irregularidades – ele admite ter recebido a doação, mas nega ter feito qualquer favor em troca.

Na época, sua defesa disse que a acusação "pretendeu, de forma absurda e injurídica, a transformação uma doação recebida de empresa privada pelo Instituto Lula, devidamente contabilizada e declarada às autoridades, em tráfico internacional de influência".

9. Réu: propina da Odebrecht

Em junho de 2019, o juiz Vallisney de Oliveira aceitou denúncia por corrupção contra Lula, o empresário Marcelo Odebrecht e os ex-ministros Antonio Palocci e Paulo Bernardo.

O caso envolve suposto pagamento de propina da Odebrecht em troca de favorecimento do governo federal.

Em nota, a defesa de Lula afirmou que o ex-presidente "jamais solicitou ou recebeu qualquer vantagem indevida antes, durante ou após exercer o cargo de presidente da República". Disse, ainda, que o nome de Lula "somente foi incluído na ação com base em mentirosa narrativa apresentada pelo delator que recebeu generosos benefícios para acusar Lula".

10. Condenado: tríplex do Guarujá

No caso conhecido como "Tríplex do Guarujá", o petista é acusado de receber propina da empreiteira OAS na forma da reserva e reforma de um apartamento no balneário paulista.

Em julho de 2017, Lula foi condenado a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo então juiz Sergio Moro. Depois, a condenação foi confirmada pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em janeiro de 2018, que aumentou a pena para 12 anos e um mês de prisão.

Em abril de 2019, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter a condenação, mas reduziu a pena imposta a Lula para 8 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão.

Na ocasião, a defesa do ex-presidente Lula criticou a decisão dos ministros. Para a defesa do ex-presidente, "o único desfecho possível é a absolvição do ex-presidente Lula, porque ele não praticou qualquer crime".
Sítio de Atibaia: sentença da juíza federal Gabriela Hardt condenou Lula a 12 anos e 11 meses de prisão REPRODUÇÃO/ AJUFE

11. Condenado: sítio de Atibaia

No caso do sítio de Atibaia, Lula é acusado de receber propinas das construtoras OAS e Odebrecht por meio de reformas, em 2010, num sítio no município do interior paulista.

O imóvel pertence formalmente ao empresário Fernando Bittar, mas o MPF alega que Lula é o verdadeiro dono do sítio e era o principal usuário do local.

A juíza federal Gabriela Hardt condenou Lula a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção ativa, passiva e lavagem de dinheiro.

Além de Lula, outras dez pessoas foram condenadas na sentença proferida pela juíza , entre elas os ex-presidentes da OAS, Léo Pinheiro, e da Odebrecht, Marcelo Odebrecht. O ex-presidente Lula nega irregularidades, enquanto os dois empresários são hoje colaboradores da Lava Jato, e confessaram os crimes.

Em nota, a defesa de Lula acusou a Justiça Federal de Curitiba de fazer "uso perverso das leis e dos procedimentos jurídicos para fins de perseguição política".

A defesa destacou que o ex-presidente nunca foi o dono do sítio, e que a decisão se baseia num suposto "caixa geral" de propinas das empreiteiras porque não há, segundo a defesa, provas materiais de que o dinheiro desviado de contratos da Petrobras foi usado nas reformas.
Imóvel em Atibaia pertence formalmente ao empresário Fernando Bittar, mas MPF alega que Lula é seu verdadeiro dono REPRODUÇÃO/GOOGLE EARTH

12. Absolvido: obstrução de justiça

Em julho de 2018, o juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara da Justiça Federal em Brasília, absolveu Lula e outros seis réus no processo em que o ex-presidente era acusado de crime de obstrução de Justiça.

A acusação era a de que ele tinha atrapalhado as investigações da Lava Jato, ao supostamente se envolver em uma tentativa de comprar o silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, um dos delatores da Operação Lava Jato.

O juiz Ricardo Leite considerou que as provas eram insuficientes e que a acusação estava baseada somente em relatos de delatores. Na ocasião, a defesa de Lula disse que o juiz agiu de maneira imparcial.

AUTOR: BBC

domingo, 21 de outubro de 2018

SAIBA COMO MULHERES SÃO DESCRIMINADAS ANTES DE SEREM CONDENADAS À MORTE, PELO MUNDO

Brenda Andrew é uma das mais de 500 mulheres que estão no corredor da morte no mundo DEPARTAMENTO DE CORREÇÕES DE OKLAHOMA

Brenda Andrew está há 15 anos no corredor da morte em Oklahoma, nos Estados Unidos. Ela foi condenada à pena capital após ser considerada culpada de matar seu marido, Robert, em 2001.

Segundo a sentença, Brenda planejou o crime junto com seu amante, James Pavatt (também condenado à morte), para lucrar com a apólice do seguro de vida de Robert.

Baseando-se nas evidências, o júri considerou que não havia dúvidas sobre sua culpa, mas alguns dos argumentos usados contra ela durante o processo foram alvo de críticas de que não eram oportunos nem relevantes para julgar o crime.

Os jurados ouviram, por exemplo, sobre as supostas aventuras de Brenda fora de seu casamento anos antes do assassinato. Também souberam detalhes sobre o tipo de roupa que ela costumava vestir.

Ainda foi mostrada a lingerie encontrada em sua mala depois que ela fugiu para o México, o que, segundo o promotor, demonstrava que ela não vivia como uma "viúva aflita" após a morte do marido.

E esses detalhes, segundo juízes que revisaram o caso e reconheceram erros durante o processo, podem ter tido uma influência determinante na decisão do júri ao condená-la.
Além de Brenda Andrew, outros 46 condenados à morte aguardam sua execução em Oklahoma DEPARTAMENTO DE CORREÇÕES DE OKLAHOMA

"Esses erros, em sua forma mais atroz, incluem um padrão de apresentar evidências que não têm outro propósito a não ser dizer que Brenda Andrew é uma esposa, mãe e mulher ruim", afirmou Arlene Johnson, juíza do Tribunal de Apelações Criminais de Oklahoma.

E essa apresentação de "provas inapropriadas", destacou a juíza ao revisar o caso em 2007, violou "a regra fundamental de que um acusado deve ser condenado pelo delito imputado e não por ser uma pessoa ruim".

Johnson não duvidou do veredito sobre a culpa de Brenda, mas pediu que a sentença de morte fosse revista. Outro colega de tribunal recomendou inclusive repetir o julgamento, mas a maioria dos juízes determinou que a pena aplicada fosse mantida.

Brenda continua à espera de sua execução. Hoje, tem 54 anos.

'Preconceitos e discriminação'

Brenda Andrew é uma de ao menos 500 mulheres que estão no corredor da morte no mundo. O Organização das Nações Unidas (ONU) alerta, no entanto, que o número pode ser maior.

Apesar de mulheres serem não mais de 5% das pessoas que aguardam para serem executadas, a ONU aponta, neste mês de outubro, quando se comemora o Dia Mundial contra a Pena de Morte (10/10), que "sua invisibilidade mostra que suas necessidades estão em grande medida ocultas".
Apesar da falta de dados públicos, acredita-se que, no Irã, dezenas de mulheres esperam para serem executadas AFP

Por isso, 11 relatores da ONU pediram que países "revisem todas as sentenças de morte contra mulheres e meninas e que adotem políticas de gênero para abordar (...) os preconceitos e a discriminação que caracterizam suas investigações e julgamentos" em comparação com homens na mesma situação.

Um relatório publicado em setembro pelo Centro sobre a Pena de Morte da Faculdade de Direito da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, lançou uma luz sobre a situação dessas mulheres.

Não foi uma tarefa simples, por causa da falta de transparência de muitos países que aplicam a pena.

No caso da China, onde o percentual de mulheres no corredor da morte é estimado entre 1% e 5% do total de condenados nessa situação, o relatório considera que o número podem ser de "dezenas ou mesmo centenas" de presas à espera de uma execução.

É um caso similar ao do Irã, onde advogados especializados em direitos humanos calculam que haja dezenas de mulheres condenadas à pena de morte. Apenas no ano passado, ao menos dez foram executadas.

Também é desconhecido o número de condenadas à morte na Arábia Saudita, onde no mínimo nove foram executadas desde 2015.
O país onde o relatório aponta que há mais mulheres no corredor da morte é a Tailândia, com um total de 94 (ou 18% das pessoas à espera de uma execução no país).

Em seguida, estão os Estados Unidos, com 54, Bangladesh, com 37, Paquistão, com 33, e Nigéria, com 32.

Violência de gênero

O estudo também identificou os tipos de delitos mais comuns pelos quais mulheres costumam ser condenadas à pena de morte.

Dezenas delas respondem em países islâmicos por "crimes contra a moralidade", como adultério. Essa prática, alerta a ONU, vai contra os limites internacionais da aplicação da pena de morte unicamente em casos de homicídio doloso.

O segundo tipo de delito mais comum são aqueles relacionados a drogas.
As mulheres representam 30% das prisões por narcotráfico no mundo AFP

De fato, as mulheres - presas em suas maioria por vender drogas nas ruas ou atuar como "mulas" ao transportá-las para outro país - representam 30% das prisões por narcotráfico no mundo.

No entanto, a maioria das mulheres no corredor da morte foram condenadas por assassinato, com frequência de familiares próximos.

O relatório destaca que muitos destes crimes foram cometidos em um contexto de violência de gênero ainda que, uma vez mais, seja impossível saber quantos, por falta de dados.

"Em muitos casos de mulheres acusadas de matar o marido, por exemplo, não se questionou no julgamento se havia um contexto de violência doméstica, por isso não feitas alegações baseadas em violência de gênero e o tribunal quase nunca ouve algo sobre isso", diz Delphine Lourtau, diretora-executiva do Centro sobre a Pena de Morte de Cornell.

"E, quando isso ocorre, na maioria das vezes, o tribunal não considera isso uma prova relevante para entender as circunstâncias do crime."
A ONU concorda que é extremamente raro que um abuso doméstico seja levado em conta como atenuante nos processos que conduzem à pena capital.

"A imposição da pena de morte é sempre arbitrária e ilegal quando o tribunal ignora fatos essenciais que podem ter influenciado significativamente nas motivações, na situação ou na conduta de um acusado de um crime passível de pena de morte, inclusive a exposição à violência doméstica e a outros abusos", disseram os relatores.

A ONU também recorda que a execução de qualquer pessoa por crimes cometidos quando esta tinha menos de 18 anos é vetada por leis internacionais.

O relatório de Cornell reconhece a dificuldade de documentar estes casos, às vezes por conta da dificuldade de definir a idade das condenadas, mas todos os casos que detectou estavam relacionados com violência de gênero, casamento infantil e/ou abuso sexual, em países como Irã e Paquistão.

"Segundo as leis iranianas, meninas podem ser condenadas à morte a partir dos 9 anos de idade", destaca Lourtau.

Teoria da mulher diabólica

O Centro de Cornell aponta que algo que diferencia os casos de mulheres condenadas à morte em relação aos de homens é o fato de que a violação dos estereótipos de gênero tradicionalmente associados às mulheres é geralmente um fator adicional quando se trata de optar pela pena capital para puni-las.

"Em muitos casos, os tribunais julgam as mulheres não apenas por seus supostos delitos, mas também pelo que percebe como falhas morais, como esposas 'infiéis', mães 'indiferentes' ou filhas 'ingratas'", dizem os relatores da ONU.

Mas as estatísticas apontam que, em geral, os jurados tendem a impor a pena de morte com menos frequência a mulheres do que a homens.
Jurados tendem a impor a pena de morte com menos frequência a mulheres do que a homens GETTY IMAGES

Especialistas afirmam que os transtornos emocionais são considerados como atenuantes em muitos de seus casos e que o júri costuma relutar mais em deixar crianças vivendo sem a mãe do que sem o pai.

Para contrapor essa tendência, em muitos processos contra mulheres, é usada uma estratégia identificada em documentos de criminologia e gênero há décadas: a chamada "teoria da mulher diabólica".

Isso significa explorar os casos em que as mulheres rompem com estereótipos do comportamento feminino tradicional para que sejam submetidas a castigos frequentemente reservados a homens.

Segundo o advogado de Brenda Andrew, John Carlson, essa estratégia foi "habilmente" utilizada por promotores para apresentar sua cliente como uma mulher que, por seus atos, renunciava "à proteção que a condição feminina costuma oferecer sob a ótica do júri".
Brenda Andrew, que atualmente tem 54 anos, segue no corredor da morte junto a James Pavatt DEPARTAMENTO DE CORREÇÕES DE OKLAHOMA

"Representaram Andrew como malvada de uma forma unicamente feminina, como agressiva sexualmente, hostil a noções profundamente arraigadas de feminilidade e ansiosa por profanar as normas da sociedade sobre o matrimônio e a monogamia", diz.

"Para provar que era uma assassina apta a ser executada, demonstraram que era uma mulher adúltera que desfrutava e inclusive se deleitava com sua vida sexual enquanto traía o marido. Feito isso, foi fácil convencer o júri de condená-la à morte."

Questionado se o veredito teria sido também a pena de morte se sua cliente fosse homem, o advogado acha que não: "Os homens que são julgados por crimes capitais não têm por que serem apresentados como adequados para receber penas (consideradas) masculinas. As mulheres devem ser primeiro denegridas. Então, estão prontas para a morte".

AUTOR: BBC

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

NOS EUA, OS DESENHOS QUE LEVARAM INOCENTE A DEIXAR PRISÃO 27 ANOS APÓS SER CONDENADO POR ASSASSINATO

Talento de Valentino Dixon atraiu a atenção das autoridades prisionais UNIVERSIDADE DE GEORGETOWN

O talento para arte ajudou um presidiário inocente a deixar a prisão após ser condenado injustamente por assassinato nos Estados Unidos.

Valentino Dixon, de 48 anos, estava preso há 27 anos por um crime que não cometeu. E sustentou sua inocência durante todo o tempo em que ficou atrás das grades.

Mas a reviravolta do caso, que levou à revisão do processo e à sua absolvição, só ocorreu depois que sua habilidade para desenhar chamou a atenção de um carcereiro.

Dixon cumpria pena na penitenciária Attica Correctional Facility, em Nova York, quando as autoridades prisionais começaram a observar seu talento.

O diretor da prisão entregou a ele uma fotografia do 12º buraco do clube de golfe Augusta National, no Estado americano da Geórgia, e perguntou se desenharia a paisagem para ele.
'Eu não sabia nada sobre golfe', diz Dixon GOLF DIGEST

"Depois de 19 anos na Attica Correctional Facility, a visão de um buraco de golfe mexeu comigo", disse Dixon.

"Parecia tranquilo. Imagino que jogar (golfe) deve ser muito parecido com pescar."

Com lápis de cor, ele começou a criar ilustrações minuciosas e vivas de várias pontes e canais.

"Eu não sabia nada sobre golfe. Sou da periferia", contou à imprensa local.
A revista Golf Digest publicou um perfil de Dixon, com destaque para suas ilustrações, em 2012 GOLF DIGEST

Os desenhos impressionaram os editores da Golf Digest, que publicaram um perfil do prisioneiro, com destaque para suas obras, em 2012.

"Talvez um dia eu possa jogar o jogo que apenas imaginei", afirmou Dixon no artigo, descrevendo como desenhou paisagens que nunca viu.

A reportagem despertou o interesse de estudantes de Direito da Universidade de Georgetown, que fazem parte do projeto Prisons and Justice Initiative, que oferece representação legal gratuita a condenados e que trabalha pelo fim do encarceramento em massa. Eles decidiram investigar o tema e defender seu caso.
A condenação

Dixon recebeu uma pena mínima de 38 anos de prisão pelo assassinato de Torriano Jackson, de 17 anos, em agosto de 1991, após uma discussão sobre uma mulher em Buffalo, Nova York.

Ele admitiu ter estado no local do crime, mas disse que estava em uma loja próxima comprando cerveja quando ouviu os tiros.

Dixon afirmou que várias testemunhas poderiam confirmar que ele não efetuou os disparos.

Mas seu advogado não acionou nenhuma delas, já que várias foram acusadas ​​de perjúrio (juramento falso).

O detetive do departamento de homicídios também não testemunhou durante o julgamento, algo incomum nesse tipo de caso.

Mas uma falha mais séria no caso foi descoberta pelo grupo de estudantes da Universidade de Georgetown.

Os promotores haviam omitido ao advogado de defesa de Dixon que o resultado do teste de pólvora realizado nas roupas de seu cliente havia dado negativo.
O verdadeiro assassino

Além disso, outro homem, Lamarr Scott, admitiu à imprensa local, apenas alguns dias após o assassinato, que tinha atirado em Torriano Jackson.

"Não quero que meu amigo (Dixon) leve a culpa por algo que eu fiz", disse Scott a um repórter da WGRZ-TV.
Estudantes de direito da Universidade de Georgetown, que trabalharam no caso, cumprimentaram Dixon quando ele foi libertado UNIVERSIDADE DE GEORGETOWN

Mas ele nunca foi preso. O irmão da vítima disse que viu Dixon efetuar os disparos.

De acordo com o jornal Buffalo News, os promotores reconheceram que Scott havia confessado o crime há muito tempo.

"Scott confessou esse crime desde 12 de agosto de 1991", disse a advogada-assistente Sara Dee ao tribunal.

"Ele confessou esse crime mais de 10 vezes."
Absolvição

Scott, que está preso atualmente por outro crime, teve finalmente a chance de confessar formalmente o assassinato de Torriano Jackson perante a Justiça.

Horas depois, Dixon foi solto.

"Eu peguei a arma", disse Scott, agora com 46 anos, ao tribunal de Erie, em Nova York.

"Eu puxei o gatilho e todas as balas saíram. Infelizmente, Torriano acabou morrendo."

Foi o promotor distrital do Condado de Erie, John Flynn - no cargo há menos de um ano - que ordenou uma revisão do caso.

Mas apesar da absolvição de Dixon, os promotores afirmam que ele forneceu a arma do crime, descrita como uma metralhadora.

Eles também disseram que ele era um "traficante de drogas em ascensão" em Buffalo na época da prisão.

"Dixon é inocente do assassinato pelo qual foi considerado culpado, mas levou a arma para a briga."
Quais são os planos de Dixon?

"É a melhor sensação do mundo", disse Dixon, enquanto saía como um homem livre do tribunal, na quarta-feira.

Ele foi recebido pela filha, que era um bebê quando foi preso.

A jovem de 27 anos levou, por sua vez, os netos de Dixon - gêmeos de 14 meses.

Ele disse que espera continuar fazendo ilustrações e, quem sabe, visitar um campo de golfe algum dia.

"Com a mente e corpo intactos, a expectativa é que Dixon viva bons anos pela frente", escreveu a revista Golf Digest na quarta-feira.

"Talvez ele até comece a jogar golfe."

AUTOR: BBC

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

NOS EUA, HOMEM QUE PASSOU 17 ANOS NA PRISÃO CONFUNDIDO COM SÓSIA PEDE INDENIZAÇÃO MILIONÁRIA

Richard Anthony Jones (à dir.) passou 17 anos na cadeia e sempre se disse inocente da acusação de roubo. Ele foi solto depois que descobriu ter um 'sósia', Ricky, que poderia ter cometido o crime (Foto: Kansas City Police Department)

Há quase duas décadas, Richard A. Jones foi condenado a 19 anos de prisão pelo roubo de um celular no estacionamento de um supermercado Walmart, no estado do Kansas, nos Estados Unidos.

Na época, ele foi identificado por testemunhas como o autor do crime. Mas Jones sempre se disse inocente e, enquanto cumpria a pena no Lansing Correctional Facility, ouviu de outros presos que se parecia muito com um homem chamado Ricky, que também cumpria pena.

Essa semelhança eventualmente garantiria a ele a liberdade. No ano passado, um juiz anulou a condenação de Jones depois que as fotos dos dois homens foram colocadas lado a lado. Ao ver as imagens, as testemunhas originais do caso disseram que não conseguiam ver diferença entre as duas pessoas.

Jones conseguiu sair da cadeia, mas só 17 anos depois de ter entrado pela primeira vez no presídio de Lansing. Por isso, ele quer reparação.

Nesta quarta-feira, o americano entrou com uma ação no Distrito Judicial de Kansas exigindo US$ 1,1 milhão (cerca de R$ 4,6 milhões) em compensação do Estado - cerca de US$ 65.000 para cada um dos 17 anos que passou na prisão por um crime que diz não ter cometido.
As fotos dos dois homens foram mostradas às testemunhas, que disseram não conseguir diferenciar as duas pessoas (Foto: Kansas City Police Department)

Quando foi condenado, Jones tinha 25 anos e era pai de duas crianças pequenas. Hoje, ele tem mais de 40 anos e as filhas têm 24 e 19 anos.

"Uma boa parte da minha vida foi tirada de mim e eu nunca poderei voltar no tempo", afirmou ele, em entrevista na quinta.

"Naquela época, eu estava tentando ser responsável como pai. Eu não era perfeito, mas fazia parte da vida delas. Foi muito difícil ficar preso, porque eu estava acostumado a estar presente na vida das minhas filhas."

'Agulha no palheiro'

Na época em que descobriu o "sósia" e foi solto por decisão da Justiça, Jones declarou à imprensa que a descoberta foi como "achar uma agulha no palheiro".

"Eu não acredito em sorte. Acredito que fui abençoado", afirmou ao jornal local Kansas City Star.

O sósia nega que tenha cometido o crime de roubo pelo qual Jones foi condenado. Ao liberar Jones da prisão, o juiz não culpou Ricky pelo roubo, apenas disse que, com base na nova evidência, nenhum juri "sensato" o teria condenado.

Antes da descoberta do sósia, Jones havia recorrido sem sucesso da condenação pelo roubo de 1999. "Todos os meus recursos tinham sido negados", disse.
Richard Jones comemorou a soltura, no ano passado, com os familiares. As duas filhas dele eram crianças quando ele foi preso (Foto: Gofundme)

Em 2015, porém, ele contou sobre a semelhança com Ricky a pesquisadores do Midwest Innocence Project - um grupo que tenta ajudar pessoas que possam ter sido condenadas por engano. Advogados que atuam nessa ONG se interessaram pelo caso e ajudaram Jones.

'Tudo fez sentido'

"Quando eu vi a foto do meu sósia, tudo fez sentido para mim", ele diz. Jones havia sido condenado com base apenas em evidências de testemunhas.

Não havia DNA ou impressão digital que o ligasse ao crime. Os pesquisadores descobriram que outro homem não apenas era "igual" a Jones, mas também morava perto da cena do crime, no estado do Kansas, enquanto Jones morava no estado vizinho de Missouri.

Advogados de Jones também disseram que ele estava com a namorada e a família dela no mesmo momento em que ocorreu o roubo de celular. Eles argumentaram ainda que os métodos de identificação usados pela polícia há 17 anos eram falhos.

AUTOR: BBC

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

SAIBA QUEM É A ÚNICA MULHER CONDENADA À PRISÃO PERPÉTUA NA AMÉRICA LATINA, POR CRIMES CONTRA A HUMANIDADE

Mirta Graciela Antón foi a primeira mulher da América Latina ser condenada à prisão perpétua por crimes contra a humanidade

"Ela esticou as mãos como garras, pegou meus mamilos e apertou. Apertava e torcia; torcia e apertava", lembra uma das vítimas de Mirta Graciela Antón, também conhecida como "La Cuca".

Ela é a única mulher na América Latina condenada à prisão perpétua por crimes contra a humanidade.

Outra vítima detalha os métodos de tortura da ex-policial: "Ela batia em meus testículos com tacos. Fazia o mesmo com pessoas que estavam ao meu lado. Eu escutava o barulho e pensava: lá vêm aqueles tacos de agulha".

Os testemunhos acima foram colhidos entre 2012 e 2016 pela Justiça da província argentina de Córdoba durante uma força-tarefa que investigou os crimes ocorridos dentro Departamento de Informações da Polícia de Córdoba, conhecido como D2, nas décadas de 70 e 80. A instituição foi um dos maiores centros de detenção e tortura da ditadura militar argentina.

As autoridades ouviram 900 testemunhas e identificaram 716 vítimas. Dos 43 acusados, 38 foram declarados culpados. Desses, 28 foram condenados à prisão perpétua.
Durante seu período na polícia, Mirta Graciela Antón sempre ficou cercada por homens, como nesta foto com representantes da repressão da ditadura IRMA MONTIEL

Nos julgamentos, Mirta Graciela Antón foi a única mulher condenada por crimes contra a humanidade. Ela foi considerada culpada por 12 homicídios, 16 privações ilegais de liberdade, 21 casos de tortura, cinco desaparecimentos e seis abusos.

Embora existam outros casos de mulheres condenadas por crimes contra humanidade na América Latina - no Chile há uma alemã que atuou na repressão da ditadura de Augusto Pinochet -, Antón é a única imputada com prisão perpétua.

Durante o processo, ela se declarou "total e absolutamente inocente". Está presa há oito anos na cadeia de Bouwer, em Córdoba.

Nos últimos anos, ela se encontrou cinco vezes com jornalista Ana Mariani, que recentemente publicou um livro sobre a torturadora.

Córdoba e a repressão

A província de Córdoba, a segunda maior da Argentina, sofreu com uma feroz perseguição a opositores do governo mesmo antes do golpe militar de 24 de março de 1976, que iniciou um dos mais sangrentos regimes da América Latina.

"A ditadura mostrou uma ferocidade especial nesse território (Córdoba)", diz Mariani.
Essa é a entrada do chamado D2, departamento policial Córdoba, onde ocorreram assassinatos e torturas; hoje, o espaço é um centro de memória da ditadura MECHI FERREYRA

Entre 1976 e 1983, quando a ditadura acabou, ao menos 30 mil pessoas desapareceram. Mas há quem diga que há pelo menos mais 9 mil casos não contabilizados de pessoas que sumiram durante o regime.

"Houve cumplicidade (com a ditadura) de civis, da Igreja, da Justiça e dos empresários. Não foi apenas um golpe militar, foi algo muito maior que isso", explicou Mariani à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. "É uma cumplicidade que, de certa maneira, continua existindo até hoje."

'Amoral'

Mirta Graciela Antón tem 64 anos e entrou na polícia quando tinha 21. Sua família fez carreira na corporação: seus filhos, irmãos, pai, marido e sobrinhos eram policiais.

"Meu pai me disse que, se eu quisesse chegar à faculdade, teria de trabalhar para pagar os estudos", disse Antón à sua biógrafa. Durante a apuração, a jornalista se deparou algumas vezes com a informação de que o pai era violento com os filhos.

Vítimas e testemunhas que passaram pelos calabouços do departamento de polícia de Córdoba disseram que Antón dava risadas e dançava enquanto torturava os presos políticos. Também relataram que ela matou pessoas "a sangue frio".

"Cuca não era uma pessoa imoral, ela era amoral", disse Charlie Moore, uma das vítimas que esteve presa no local. "Ela não tinha nenhum tipo de sentimento. Podia despedaçar uma pessoa sem dar qualquer sinal de sentir alguma coisa. Aquilo (a tortura) a motivava", escreveu Moore em seu livro La Búsqueda (A busca, em tradução livre).

"Se você quisesse uma pessoa para conversar com um sujeito e depois matá-lo, Cuca Antón era a pessoa indicada", escreveu o ativista.

Por outro lado, Antón sempre negou os crimes atribuídos a ela. Diz que os delitos foram cometidos por pessoas próximas, como seu irmão e seu falecido marido.

"Minha tarefa era analisar cuidadosamente o material retirado dos presos em diferentes procedimentos para que eles fossem enviados a arquivos de detentos. Mas os presos eram, em sua maioria, criminosos terroristas, não subversivos", disse Antón à Justiça.
Mirta Graciela Antón ao lado Luciano Menéndez, outro repressor condenado por crimes conta a humanidade MECHI FERREYRA

Hoje, ela ocupa uma cela separada de outros presos porque corre risco de ser atacada por ter sido policial. "É como estar em uma prisão dentro de outra prisão", disse ela a Mariani.

"Se houvesse outros policiais, eu estaria com eles, mas sou a única, eu sou o único caso no país", diz ela no livro.

A jornalista Ana Mariani afirma que Antón se adaptou a um ambiente estritamente masculino, a polícia. "Acho que ela se comportou muito bem naquele mundo de homens que é a polícia. Algumas das vítimas dizem que ela até comandou outros policiais homens. Ela tinha uma atitude investida de autoridade e também, de alguma forma, machista", diz a biógrafa.

Segundo a jornalista, Cuca Antón mostrou ter uma personalidade violenta desde jovem. "Ela foi influenciada pelos mesmos transtornos culturais, políticos e psicológicos que podem levar os homens a cometer essas atrocidades", conclui Mariani. "A gente normalmente acredita que uma mulher não pode encarnar o mal. Mas isso não é verdade."
A jornalista Ana Mariani escreveu vários livros sobre a ditadura argentina BIBIANA FULCHIERI

AUTOR: BBC

quarta-feira, 27 de junho de 2018

"COMO FIZ A POLÍCIA PRENDER ASSASSINO DE MINHA MELHOR AMIGA 25 ANOS APÓS O CRIME"

Sheila Wysocki viu-se profundamente impactada pela morte da amiga e conseguiu, décadas depois, mudar o rumo das investigações MICHAEL GOMEZ

Sheila Wysocki era uma estudante de Psicologia em Dallas, Texas, quando viu seu mundo virar de ponta cabeça ao receber a notícia de que sua melhor amiga na universidade havia sido brutalmente assassinada.

Angela Samota foi morta aos 20 anos em 1984, em um crime que a polícia não conseguiu desvendar na época.

Foi graças à insistência de Sheila que os policiais decidiram reabrir o caso décadas depois - trazendo à tona provas que mudaram o rumo das investigações e finalmente levaram à descoberta do culpado.

Em entrevista à BBC, Sheila conta como a morte da amiga a impactou, a ponto de ela decidir virar uma investigadora particular:

"Quando o telefone do meu quarto tocou, Barbara, amiga minha e de Angie, estava chorando do outro lado da linha. Ela disse que havia acontecido um acidente.

Ela chorava histericamente. Achei que Angie tivesse tido um acidente de carro. Ela chorava tanto que percebi que ela havia morrido.

Acabei descobrindo que Angie havia sido encontrada em seu quarto nas primeiras horas da manhã. Ela havia sido estuprada e esfaqueada 18 vezes. Foi muito violento, horrível.

Ela era uma boa pessoa. Quem faria algo assim?

Angie tinha um sorriso lindo, o maior que já vi - o tipo de sorriso que iluminava todo o seu rosto. Ela era uma das poucas garotas no Departamento de Ciências da Computação e Engenharia Elétrica da Universidade Southern Methodist, em Dallas. Tinha uma ótima personalidade, era linda e inteligente.
Angela Samota tinha 'o tipo de sorriso que iluminava todo o seu rosto' ELIZABETH HUNTER

Eu era diferente - era uma observadora, não virava o centro das atenções quando entrava na sala como Angie. Mas nós duas fomos criadas por mães solteiras. Nós duas crescemos sem a presença dos nossos pais e nos aproximamos por causa disso. Éramos opostas, mas nos conectamos muito.

Após sua morte, fui à delegacia de polícia falar com os investigadores, que me interrogaram e me mostraram fotos. Me lembro até hoje de uma de Angie na cama, de olhos abertos, com sangue por toda parte. Foi traumatizante.

A polícia acreditava que o culpado pelo crime era Russell Buchanan, um arquiteto provavelmente quatro ou cinco anos mais velho que nós e a quem Angie via como uma boa conexão (profissional).

Russell era um cara tímido, então Angie o havia convidado para ir dançar com ela e outra amiga naquela noite.

Ele deu vários depoimentos à polícia, mas depois os policiais me disseram que ele havia parado de cooperar e havia arrumado um advogado.

Nos anos 1980, no Texas, havia um notório advogado de defesa chamado Richard 'Racehorse' Haynes, que tinha fama de só ser contratado por pessoas "culpadas". Russell o contratou, então, para mim, ele era obviamente culpado. Mas não havia nenhuma evidência física (ligando-o à cena do crime). O caso continuou aberto.
Angela Samota em suas aulas na universidade; ela foi brutalmente assassinada aos 20 anos de idade SOUTHERN METHODIST UNIVERSITY

O assassinato de Angie foi o evento mais traumático da minha vida, e eu não sabia o que fazer. Dormi no chão do quarto da minha mãe por muito tempo. Eu mudei, minha inocência se foi. Eu não consegui nem voltar à universidade.

O mais difícil era não saber o que havia acontecido com ela. Como pode ser que um dia ela estava viva e no outro não? O que havia acontecido com ela? Isso ocupava a minha mente.

Comecei a trabalhar fazendo faxina em casas, conheci meu marido, me casei.

Eu ainda mantinha contato com o investigador do caso de Angie, a ponto de convidá-lo para o meu casamento.

Em 2004, 20 anos após o assassinato, eu havia me mudado para o Tennessee e já tinha dois filhos. 

Certa noite, eu estava estudando a Bíblia em casa, algo difícil de fazer quando se é disléxica como eu - as letras são pequenas, próximas entre si.

Enquanto eu lia, me lembro de olhar para a direita e ver a Angie. Pensei: 'será que estou sonhando? Estou dormindo? O que está acontecendo?'

Ela não disse nada, só ficou ali, com seu enorme sorriso.

Não sei se acredito em fantasmas, mas tenho muita fé e acredito em mensagens. Naquele momento, pensei: 'Chegou a hora'. Imediatamente peguei o telefone e liguei para o Departamento de Polícia de Dallas.
Sheila com seus dois filhos; ela decidiu virar investigadora particular aos 40 anos de idade, para ajudar no caso da amiga SHEILA WYSOCKI

Deixei recado para o investigador que eu conhecia, mas ele nunca retornou a ligação. Ele me conhecia bem o bastante para ir ao meu casamento, mas não para me telefonar. Acabei telefonando centenas de vezes, e ele me desdenhou. Tenho um pouco de amargura quanto a isso.

Mas o que realmente me partiu o coração foi saber que, em 20 anos, ninguém além de mim havia ligado para saber do caso. Imagine - nenhuma pessoa.

Como pode ser que alguém tenha uma morte tão violenta e ninguém tenha se interessado em saber por que ou quem cometeu o crime? Isso ainda me dá vontade de chorar.

Acho que eles (policiais) acharam que eu acabaria me cansando, mas não me cansei. Eu sentia que algo não estava certo e não aceitei o não como resposta, então continuei a telefonar.

Pesquisei e imprimi relatos sobre todos os estupros ocorridos na mesma época e sobre quem foi preso, para tentar descobrir o que aconteceu.

Até que decidi que viraria uma investigadora particular, aos 40 anos de idade.

Estudei e aprendi sobre leis, sobre cyberbullying e sobre traição entre casais. Assim que passei no exame para me tornar investigadora, achei que a polícia aceitaria trabalhar comigo. Mas fui ingênua. Eles nem ligaram.

Só que, de tão cansados que eles estavam de mim àquela altura, decidiram reabrir o caso. E deram-no a uma detetive mulher que não me desdenhou - quando ela me ligou, estava familiarizada com o caso e sabia que Russell Buchanan era o suspeito número um. Mas o que mais me chocou foi que ela disse que eles tinham provas.

Até então, eu sabia que eles haviam feito uma análise de estupro em Angie, mas eu achava que as provas haviam se perdido. Agora as provas existiam! Eu não conseguia acreditar.
Sheila com seu marido; sua insistência fez a polícia decidir reabrir o caso SHEILA WYSOCKI

Acontece que eles tinham (restos encontrados) nas unhas de Angie - então ela obviamente lutou -, que é DNA. Eles também tinham sêmen - também DNA.

Fiquei entusiasmada porque sabia que isso seria crucial: em 1984, o exame de DNA estava apenas começando, mas, 20 anos depois, já era uma poderosa arma forense.

Os processos demoraram, e só tivemos resultados dos exames em 2009. Foi quando a detetive me ligou e disse: 'Pegamos ele'.

Eu achei que ela fosse dizer 'Pegamos Russell Buchanan', mas quando ela me disse o nome (do suspeito), não sabia quem era: Donald Bess.

Hoje eu o chamo de 'A Besta'. Ele era um estuprador em série que estava em liberdade condicional quando Angie foi estuprada e morta.

O caso foi decidido pelas evidências físicas, o DNA, que correspondiam ao da Besta. E o avanço da ciência tornou a sua condenação possível.

Viajei mil quilômetros para assistir ao julgamento em Dallas e ver Angie receber justiça. Agora que ele está fora das ruas, penso nele apodrecendo na prisão em uma pena perpétua, mas isso não muda o fato de que ela continua morta.

Depois do julgamento, liguei para Russell Buchanan e pedi para me encontrar com ele.

Depois de tantos anos de raiva por achar que ele era o assassino, eu lhe pedi perdão. Mais tarde, fomos juntos ao túmulo de Angie.

Acabei descobrindo que ele é um ser humano incrível, que me agradeceu por ser persistente e ajudar a desvendar a verdade - e por finalmente tirar a nuvem de suspeita que pairava em cima dele."


A estudante da SMU, Angela Samota, e seu assassino condenado, Donald Bess. Crédito da foto: WFAA
Donald Bess foi condenado à morte em 2010 pelo estupro e morte de Angela Samota e está no corredor da morte. Segundo as investigações, na noite do crime, em 1984, ele bateu na porta da casa de Angela pedindo para usar o banheiro e o telefone, e ela acabou deixando.

O Departamento Policial de Dallas não respondeu ao pedido de entrevista da BBC para comentar as críticas feitas por Sheila Wysocki.

AUTOR: BBC

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