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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

SAIBA COMO OS BRITÂNICOS USARAM O HUMOR PARA DESAFIAR HITLER NA ALEMANHA

Adolf Hitler Foto: Getty Images via BBC

Era tarde da noite em Londres, em 1940, e o exilado austríaco Robert Lucas estava escrevendo em sua mesa. Bombas caíam na cidade todas as noites, o Exército liderado por Hitler avançava pela Europa e a invasão da Inglaterra tinha se tornado uma possibilidade factível.

Apesar de as sirenes de ataques aéreos e, como ele disse, "o barulho do inferno das máquinas de guerra" disparando ao seu redor, Lucas estava focado no trabalho: "lutar pelas almas dos alemães". Ele estava compondo uma mensagem de rádio destinada aos cidadãos do Terceiro Reich. Mas ela não era um apelo apaixonado para que eles desistissem do Führer: era uma tentativa de fazê-los rir.

Lucas trabalhava para o Serviço Alemão da BBC desde setembro de 1938. No início, o objetivo do Serviço Alemão era quebrar o monopólio nazista na transmissão de notícias do Terceiro Reich.

Os nazistas não conseguiram impedir que ondas de rádio estrangeiras cruzassem a Alemanha, mas podiam criminalizar quem ouvisse "emissoras inimigas". Eles fizeram isso assim que a guerra eclodiu. Muitas pessoas foram presas e sentenciadas à morte. Os alemães corajosos o suficiente para desrespeitar a lei tinham que tomar cuidado com os delatores, que podiam ser simples bisbilhoteiros ou até vizinhos mal intencionados. Assim, muitos ouviam a BBC embaixo de cobertores.
Mas por que você escolheria transmitir mensagens engraçadas nas terríveis circunstâncias de uma guerra? Fazer piadas para manter o moral em alta dos soldados e da população da Grã-Bretanha era uma estratégia bem-sucedida e foi implementada particularmente bem na BBC em tempos de guerra. Mas fazer isso para os inimigos? E, de qualquer forma, quem arriscaria a vida ouvindo esse tipo de coisa?

De fato, quando Lucas começou a escrever o programa de piadas e sátiras, chamado de Die Briefe des Gefreiten Adolf Hirnschal, "não fazia ideia se haveria pelo menos 50 pessoas na Alemanha ouvindo". Ele falou "no escuro sem eco", como mais tarde descreveu. O fato de seu programa - juntamente com outras duas séries de sátiras, chamadas Frau Wernicke e Kurt und Willi - terem sido encomendados em 1940, revela a ousada abordagem experimental adotada pelo Serviço Alemão da BBC em seu início.

Faltava ao serviço a equipe, o equipamento e a organização necessários para abordar adequadamente a tarefa diária de contra-propaganda. Além disso, este era um território desconhecido. O rádio ainda era relativamente novo e transmitir ao inimigo era uma completa novidade. Isso trouxe um espírito de criatividade e aventura às realizadores. Também era verdade que, em 1940, havia um sentimento de desespero generalizado. "Tudo bem, é melhor tentarmos", disse Lucas à BBC, na época.

Os programas satíricos contavam com uma coalizão improvável entre a BBC, oficiais de propaganda britânicos e exilados alemães - ou falantes da língua. Por um lado, as autoridades britânicas insistiram que a mensagem do Serviço Alemão deveria soar "tão inglesa quanto o pudim de Yorkshire (condado no norte da Inglaterra)". Mas também precisava demonstrar um conhecimento íntimo da psique alemã - por isso, a contribuição dos exilados. Porém, o relacionamento nem sempre foi fácil: como um "estrangeiro inimigo", Lucas e seus companheiros exilados eram frequentemente vistos com suspeita.

Perdido na tradução

O conteúdo peculiar dos programas deve ser entendido no contexto dessa curiosa aliança. Adolf Hirnschal é uma série de cartas fictícias escritas por um cabo alemão a sua esposa enquanto está na linha de frente na guerra. O protagonista lê as cartas ao seu companheiro de luta antes de serem postadas.

Na superfície, Adolf Hirnschal é dedicado ao seu "amado Führer". No entanto, são tão exageradas suas exclamações de lealdade que a intenção é clara: expor a superficialidade e a mentira do discurso nazista. Em sua primeira carta após a guerra ser declarada na Rússia, em 1941, ele conta à esposa como recebeu as notícias de seu tenente de que eles estão sendo transferidas para a fronteira russa:

"Eu pulo de alegria e digo: 'Senhor tenente, solicitando permissão para expressar que estou tremendamente satisfeito por estarmos agora confraternizando com os russos. Nosso amado Führer já não disse em 1939 que nossa amizade com os russos é irrevogável e irreversível? '

Assim, Hirnschal expõe a hipocrisia da política de Hitler em relação à Rússia, tudo coberto pela "lealdade absoluta". Esse foi um método que Bruno Adler - um historiador e escritor alemão que havia fugido para a Inglaterra em 1936 - usou para compor outra personagem, a Frau Wernicke.

A protagonista é uma dona-de-casa de Berlim, uma mulher de bom coração e tagarelada, que, por meio de loucos monólogos, reclama de injustiças, racionamentos e contradições da vida cotidiana durante a guerra, o tempo todo exibindo um forte senso comum.

Ao justapor seu apoio pseudo-ingênuo ao nazismo e as duras realidades da vida em guerra que ela descreve, as intenções subversivas de Adler são claras. Em um caso, Frau Wernicke pergunta à amiga por que ela está tão chateada, mas logo responde à própria pergunta:

"Só porque seu marido teve que fechar seus negócios e porque seu filho agora está na Wehrmacht (forças armadas alemãs). E porque sua filha, Elsbeth, tem que fazer um segundo ano obrigatório de trabalho estatal. E porque você não tem mais uma vida familiar? Por isso você não está feliz".
Comediante Tommy Handley, que estrelou It’s That Man Again Foto: BBC

Kurt und Willi também foi roteirizado por Bruno Adler. O programa é uma série de diálogos entre dois amigos: o antigo professor e o segundo oficial do Ministério da Propaganda alemão. Enquanto discutem os eventos da guerra bebendo cerveja em um bar de Berlim, Kurt assume o papel do ingênuo alemão médio. Willi é um oportunista cínico e imoral, vazando para o amigo os mais recentes subterfúgios, truques e tolices inventados pelo Ministério da Propaganda.

Esses programas tinham um senso de humor que provavelmente não façam tanto sentido quando traduzidos do alemão - e também quando transpostos do rádio para a escrita comum. E, é claro, há a influência do tempo. Mas eles levantam questões que, já naquela época, eram objeto de intenso debate.

As atrações poderiam realmente ter algum efeito? A sátira poderia ser usada como uma arma que converteria os alemães para o lado britânico da guerra? Teriam o poder de fazer alguém desejar o fim da guerra? Eles foram mesmo apropriados para o momento? O diretor de transmissões europeias da BBC, Noel Newsome, tinha suas dúvidas. Referindo-se a uma transmissão de Kurt und Willi em 1944, ele escreveu:

"Se isso fosse engraçado e divertido, só poderia ter servido ao propósito lamentável de aliviar a tensão na Alemanha... Se Kurt und Willi não era realmente engraçado, o recurso era uma perda de tempo precioso em qualquer caso. No rádio local, os alemães [...] não devem fazer piadas quando sintonizam Londres."

Havia dúvidas sobre as virtudes da propaganda satírica desde o início. O primeiro experimento com humor no Serviço Alemão foi transmitido no dia da mentira em 1940. Os produtores tiveram que tranquilizar os oficiais de propaganda da Electra House, onde funcionava um dos comandos de guerra, de que a transmissão de Der Führer Spricht, uma paródia de Hitler escrita e executada pelo exilado austríaco Martin Miller, permaneceria uma exceção. O que, como sabemos, não aconteceu.

Outros programas de humor se seguiram, e logo os russos entraram em cena. A Rádio Moskau experimentou formatos semelhantes, um dos quais - Frau Künnecke Will Jarnischt Gesagt Haben - era uma quase uma cópia de Frau Wernicke. Mas nenhum desses programas foi transmitido com tanta regularidade como Hirnschal, Frau Wernicke e Kurt und Willi. Eles foram transmitidos - semanalmente ou quinzenalmente - durante a maior parte da guerra, do verão de 1940 até 1945.

Mas quem estava ouvindo o Serviço Alemão e o que eles acharam dele? Segundo Robert Lucas, uma "enxurrada de cartas de agradecimento" chegou dos ouvintes do Serviço Alemão assim que a guerra terminou. "As transmissões de Londres me salvaram do suicídio durante os dias mais negros da guerra de Hitler", afirma uma carta dos arquivos da BBC. Outra pessoa diz: "É graças à BBC e somente à BBC que eu tive força moral para não ser cúmplice".

Muitas das cartas destacavam os programas de sátiras: "Vocês também nos trouxeram um humor que tornou o insuportável suportável para nós", escreveu um ouvinte, enquanto outro expressou admiração por "quão bem vocês entendem a alma do povo".

Talvez essas cartas forneçam uma justificativa suficientemente boa caso você se questione se Charlie Chaplin agiu certo ao produzir o filme O Grande Ditador depois que soube das atrocidades empreendidas pelos nazistas. Há diversas obras do tipo. Neste domingo (15/9), uma sátira sobre o período nazista, Jojo Rabbit, venceu o Festival de Toronto, considerado uma prévia do Oscar.

O filósofo alemão Theodor Adorno insistia que a sátira antifascista falhava em compreender ou descrever a realidade e, pior ainda, ignorava ou banalizava a gravidade do nacional-socialismo. Porém, há quem diga que o riso nos lembra do que significa ser humano. A mera existência dos programas satíricos não mostrava fé no intelecto e, acima de tudo, na humanidade da platéia?

"Como qualquer outra tirania, o nazismo não tinha humor", escreve Robert Lucas. Olhando para trás agora, talvez esse tenha sido o principal sucesso dos programas pioneiros de sátira do Serviço Alemão. Pois essa era uma área em que os nazistas não tinham nada a oferecer e não podiam competir.

E mesmo que os monólogos absurdos de Frau Wernicke ou Adolf Hirnschal fossem ouvidos por um número relativamente pequeno de alemães, mesmo que nem sempre fossem tremendamente engraçados, que eles proporcionavam conforto e talvez iluminação a alguém era a prova de que a missão de Lucas de "lutar por as almas dos alemães" não foi completamente em vão.

AUTOR: BBC

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